No antigo teatro grego, às vezes a história entrava em situações complicadas para o autor resolver. Fosse por dificuldades técnicas de encenação, fosse por questão de tempo, fosse porque a história deixava pontos sem nó, falhas no próprio roteiro. A solução? Baixava por um guindaste um ator representando um deus que resolvia o problema. Um deus surgido da máquina. Os deuses sabem tudo, podem tudo, resolvem tudo. Eles estão além da lógica interna de uma história.
Imaginem só tamanho cinismo: num mundo inteiramente voltado para os rituais religiosos e tradições, um dramaturgo utiliza esses mesmos deuses que regem cada pequeno detalhe do mundo como ridículos instrumentos para desemaranhar um roteiro. De monarcas celestiais a quebra-galhos dramáticos! Além disso, as artes ainda estavam na sua infância, e o que fazem as crianças quando confrontadas com situações que não conseguem resolver? Choram por uma figura superior que consiga.
Não é desse que eu to falando. |
É desse. |
De lá pra cá, mais de 2000 anos se passaram, os anfiteatros viraram televisões, as epopeias viraram HQs e filmes, os pergaminhos viraram computadores. A arte já não é mais criança, mas depois de certa exuberância, virou aquele adolescente de 50 anos. A indústria cultural inaugurou uma nova era na arte: o tal do pop. Sobre o dito cujo, não tenho muito a acrescentar, de Frankfurt ao Hawaii, todo mundo já falou dele, de seus males e méritos, e de como ele não poupa ninguém. Da tragédia grega ao pop, de Eurípedes a Zack Snyder muita coisa mudou, mas o deus padroeiro ainda é o mesmo: o ex machina.
Eles, os velhos deuses, ficaram mais sorrateiros, mais ainda estão lá. Hoje em dia ninguém aceita muito bem que um deus salve o herói de cada situação em que ele entra, as pessoas gostam que seus modelos morais fictícios resolvam seus próprios problemas. Meritocracia, como dizem. Eles agora são os próprios deuses, que contra qualquer lógica anteriormente apresentada, vencem. Contra todas as possibilidades, vencem. No último minuto. Certamente culpa do cristianismo - deus agora habita em nós, e desce da máquina em um fundo verde.
Alguns desses novos deuses, ou semideuses, se sobressaem justamente por agirem como se soubessem que não passam de um ator num guindaste. Vide Deadpool. Resta a piada interna, a metalinguagem e o cinismo para aliviar a dor de ter um guindaste preso às costas, e para se desculpar com o público por não ser nada além disso.
Esses messias modernos não são mais que reencarnações dos passados. E essas cópias não param de se multiplicar e de renascer, indefinidamente. Se a história entra num beco sem saída, se caem as vendas das revistas, se fracassam as bilheterias do cinema, não há reboot que não mantenha viva uma franquia famosa; se aumentam as vendas, se lucram os acionistas, uma temporada vira cinco, um filme vira trilogia. Todo mundo sai feliz.
Também não é de hoje que se repetem fórmulas de sucesso, o problema é que fórmulas de sucesso não duram para sempre, não da mesma forma. Chega a um ponto que a gente percebe que estão só nos sacaneando pra fazer dinheiro. Quantos Oscars ganharia Mad Max: Fury Road se seguisse os mesmos passos do primeiro filme de 1979? Me pergunto até quem sairia mais insatisfeito, o jovem dos anos 70 assistindo o novo título, ou o jovem atual assistindo ao "clássico". Já adianto que, com meus olhos de 2015 achei o primeiro Mad Max uma bela bosta. Clássicos datados, geracionais.
Tudo isso para dizer que, de fórmula em fórmula, é possível que haja um limite, um fundo do poço para os nossos queridos enlatados que nem o melhor diretor de imagem consiga salvar, como salvou Mad Max: Fury Road (um filme estético, acima de tudo). Chega um ponto em que as fórmulas começam a envelhecer e o que resta é a desculpa em forma de autorreferência: "ok, eu sei que eu sou um super-herói, badass, sei que soa ridículo, mas estou fazendo piada disso pra soar original, agora senta aí dê umas risadas"; "ei, viram isso que eu fiz? Pegaram a referência? Era só isso mesmo". Temos no mainstream atual, obras cujos núcleos consistem em recriar motes antigos para que o público possa se sentir bem por entendê-los. É a referência pela referência. Estamos mordendo nossos próprios rabos.
"Pegaram a referência" lá do início do texto? |
Quando não há mais recursos para parecer original num ramo que vive de reproduzir fórmulas, o que resta é derrubar a quarta parede e chutar o pau da barraca, como Deadpool. Mas o pop geralmente não derruba a quarta parede como um recurso criativo, revolucionário, como Dom Quixote ou Brecht, mesmo alguns filmes (Clube da Luta, Annie Hall, etc.). Derruba por derrubar, porque é um mercado pouco explorado, reutilização do recurso aplicado às novas fórmulas, porque a piada ainda tem graça... por enquanto. Não tem nada por trás e talvez mesmo os clássicos cults citados não se diferenciem disso.
Por fim, é bom lembrar que uma obra agora já não existe em função de si mesma, a produção é feita em função do público e depende do feedback do público, dado em forma de dinheiro. O que é patrocinado prospera. Alguns acham isso o fim da cultura, outros, seu alargamento para além da pretensão dos eruditos. Eu acho que por trás disso tudo estão os velhos deuses, lutando, maquinando para permanecerem vivos. Do alto de seus guindastes.
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