"Por que o Brasil não vai pra frente?" Ou como a elite sabota o país

Um tempo atrás vi alguém - não me lembro quem - dizer que todo brasileiro tem sua própria resposta-teoria sobre a pergunta "por que o Brasil não vai para a frente". Bom, eu não sou menos brasileiro que os outros.

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No Brasil as ideias parecem chegar um pouco atrasadas, e quando chegam, são apenas implantadas, não adaptadas à nossa realidade. Como se apenas implantando uma ideia em abstrato a realidade fosse mudar: o mesmo mal acusado por Marx em O Idealismo Alemão, e ao mesmo tempo um mal completamente diferente, porque a origem desse cacoete nacional é outra que não a predominância do idealismo hegeliano na cabeça do brasileiro, mas o problema típico das ex-colônias. Lugares que, oprimidos por suas metrópoles, sempre arrumaram "jeitinhos" de escapar à lei. Nossa cultura cresceu avessa ao formalismo e à rigidez das  leis e das ideias, mas malandra no seu uso como pretexto, como forma, maquiagem. Disso nasce o abismo entre o legal e o real, entre o que diz a lei e o mundo concreto.

E essa tem sido a grande batalha política brasileira: um lado que luta pelo real, e outro que se contenta com o formalismo da lei, do rito, mas que na prática, só quer saber do seu. Um lado que busca políticas de inclusão, reformas que diminuam o abismo social, junto dos movimentos sociais; e outro que ignora essa realidade, que ignora a história que a criou e individualiza os problemas sociais. E o pior é que o segundo lado que acusa o primeiro por ter "viés ideológico", o lado que acredita que implantando uma ideia abstrata de liberalismo e de não-interferência teremos nossos problemas resolvidos, acusa de "doutrinação ideológica" o lado que acredita que é necessário tomar ações práticas e formular políticas de Estado de combate à pobreza e de incentivo social.

A bola da vez nessa nossa polarização política é o redescobrimento da Guerra Fria pela direita brasileira. Meio século depois, o discurso macarthista, aquele que dizia que os comunistas estavam vindo queimar igrejas, abrir sua geladeira e roubar seu pudim, comer criancinhas, etc, renasceu no Brasil. 30 anos após o fim da União Soviética o perigo vermelho ameaça o Brasil, só o Brasil. O país sofre com uma "doutrinação marxista", agora associada ao movimento LGBT ("gayzismo"), ao feminismo, numa tentativa de destruir o país, a família e colocar uma ditadura gay bolivariana (?) no lugar.

Discursos políticos esquizofrênicos sempre existiram, mas quando atingem este ponto, é porque alguma coisa está muito errada. Quem cria e adere esses discursos, o faz porque se sente de alguma forma ameaçado. "Eu tenho medo", o bordão da atriz global durante a campanha presidencial de 2002 já anunciava nosso futuro de polarização política. Nossa elite jamais aceitaria dividir o poder com o PT, um partido de origem popular.


É a partir do medo de interesses populares na política institucional que essa polarização foi fabricada, desonestamente fabricada. Ela começou com os movimentos antipetistas que passaram a identificar todo o mal no Brasil como proveniente do PT, e quando dizem PT, estão abarcando nele toda a esquerda, ignorando toda sua diversidade. A direita combate desonestamente a um espantalho da esquerda de meados do século XX e quem produz esse espetáculo sabe que faz isso, os donos de grandes veículos de imprensa, os líderes de movimentos "liberais"  sabem muito bem disso. Digo que é uma polarização fabricada, porque na prática o PT quase que abandonou suas bases populares em nome de governar junto da elite, tentou governar utilizando os mesmos esquemas do PSDB: mensalão, propinas nas estatais, etc, e esqueceu-se que, ao contrário do PSDB, o PT não é elite, e por mais que tenha tentado entrar no clubinho, não conseguiu, e quem não é do clube não tem tratamento especial.

PT e PSDB, esses são os dois partidos que lideram o jogo da falsa polarização. Falsa porque é um jogo de marketing político, na prática ambos governam muito parecido, mas o fazem por motivos diferentes, veremos adiante. Essa falsa polarização nos leva ao próximo passo que é pensar qual é a verdadeira dicotomia brasileira. Cheguei a conclusão de que é a concepção de povo pela qual cada lado luta.

Povo massa x povo cidadão


Para discutir quem é o povo brasileiro e que posição cada peça ocupa em nosso tabuleiro social, precisamos lembrar o que é o Brasil e quem é, para além do "povo" brasileiro, o "cidadão" brasileiro, aquele que goza da plenitude de seus direitos. Como a questão culturalista não é o cerne aqui, não irei remontar a origem do Brasil nos indígenas, a quem o próprio conceito de um Estado-Nação nada diz respeito. O Brasil, tal qual o conhecemos, nasce como uma empreitada portuguesa, o brasileiro original, ideal, é o europeu branco, cristão e que serve a dois propósitos principais: enriquecer (a coroa e a si mesmo) e propagar o cristianismo. Seus filhos mestiços, que posteriormente se tornariam a maioria no país sempre foram um acidente, uma mancha no projeto, falha humana, 'corrupção dos trópicos' e, durante muito tempo, tomados como culpados pelo atraso do país¹ - ao mesmo tempo que serviam de soldados contra os indígenas e mão-de-obra barata. Os indígenas eram um acidente da natureza, nada diferentes da fauna e da flora, nunca foi a intenção torná-los cidadãos brasileiros. Torná-los cristãos, vá lá, cidadãos jamais. Os negros foram para esses colonizadores, meros instrumentos trazidos para cá por 400 anos como forças de trabalho, sem também a menor intenção de torná-los cidadãos, muito pelo contrário.

O luso-brasileiro não conseguiria levar a cabo a colonização sozinho, porém, jamais aceitaria que essas populações escravizadas, trazidas, mestiças ou nativas, dividissem com ele o mesmo status de cidadania e influência. Claro que essa é uma grande simplificação, a história brasileira é um pouco mas maleável racialmente se comparada à outros países e não creio possível ser fiel à realidade simplificando o Brasil em preto e branco. Porém, a ideologia nacional sempre tendeu para o branco e para o realce das características embranquecedoras, e sempre foram essas as características ideologicamente predominantes (lembrem-se da redenção de Cam e do embranquecimento via imigração). Diferente de países que postulavam uma doutrina de pureza racial, onde 1% de sangue não-branco tornava alguém um não-branco, no Brasil, ainda que não se prezasse tanto pela pureza, sempre se prezou pela tonalidade da pele. Quanto mais se tende ao branco, menos provável ser vítima dos "casos isolados" de abusos policiais, discriminações em lojas, subempregos. O Brasil não preza tanto a pureza, mas preza a clareza.
Todos devem se lembrar desta polêmica imagem de um dos protestos pelo impeachment.

Enfim, criou-se assim uma divisão de status político no Brasil, que o lado mais forte sempre se esforçou por manter: de um lado, o brasileiro ideal, retratado acima, de outro uma massa indesejada/explorada/marginalizada de negros, índios catequizados e mestiços, além das poucas tribos que sobreviveram à influência europeia. O primeiro lado, identificado com a Europa, posteriormente com os EUA, sempre tentou projetar no exterior a imagem do Brasil como um país "civilizado", aos moldes europeus. Esse mesmo lado fez as primeiras constituições e leis imitando quase que ipsis litteris os modelos nortenhos. Ao segundo lado, as leis sempre foram nada mais que imposições exteriores, coisas alienígenas, que até 1988 eles não ajudaram a fazer e não tinham poder e representatividade para mudar, e quando tentaram, bem, lembremos de Canudos, de Palmares, Malês, etc. Quando o povo demonstra o mínimo poder de influenciar na institucionalidade, a elite vai na TV aberta desabafar: "eu tenho medo".

Abrindo um parêntese, é isso que se quer dizer quando se fala em "elite", "elite branca", "classe média", "coxinha", "reaça", etc. É o brasileiro que, nega ou ignora a história, e se coloca na manutenção desse Velho Brasil, é mais a defesa do elitismo que ser parte de fato dessa elite. Do mesmo modo, também há negros e mestiços desse lado (o lendário pobre de direita), e, em poucas exceções, até mesmo como parte efetiva dessa elite. A partir do governo Lula, principalmente - e aqui talvez resida sua grande falha - muitos dos que ascenderam à classe média caíram, ironicamente, vítimas dessa ideologia dominante.

Toda essa contextualização é um tanto caricatural, o espaço não é de grandes construções teóricas, convenhamos. Mas talvez agora esteja mais fácil compreender quando eu digo que, no Brasil, a principal disputa política é delimitar quem é o povo brasileiro e o que significa ser "povo". Se ser povo é ser essa massa inferiorizada que serve de força de trabalho para o "brasileiro ideal" ou se é o que diz de fato nossa constituição atual, ser cidadão brasileiro. Por mais que a constituição de 88 tenha trazido grandíssimos avanços em relação às outras mais antigas (talvez no futuro eu faça um texto sobre isso), a história se impõe pesadamente sobre o texto legal. O Brasil, durante sua história foi se adequando, aos trancos e barrancos ao que é um estado democrático de direito, mas nunca houve uma ruptura com nossa origem macabra.

Os grandes momentos na nossa história republicana sempre foram desdobramentos dessa velha batalha pelo direito à cidadania. A Primeira República manteve a ordem social, tentou se colocar como força modernizadora, liberal, mas nunca se preocupou com a inclusão do povo brasileiro. O resultado foi o aprofundamento do poder das elites locais. O retrocesso era tamanho que uma ditadura como a de Vargas, com seus contornos proto-fascistas, apresentou grandes avanços em comparação. Vargas foi o primeiro grande governante popular e seu governo marcou o começo do reconhecimento do povo como força política. Porém, mesmo Vargas só governou com apoio de parte da elite, até por fim morrer em sua mão. JK tentou implantar um projeto modernizador, mas ignorou a questão popular, o resultado foi o de sempre: crescimento econômico às custas do endividamento externo e manutenção da ordem social. 1964 foi um momento crítico, pois foi quando a ameaça popular chegou a tal ponto que foi necessário que os militares interviessem em prol do velho Brasil. Chegamos enfim ao presente, com o fim da ditadura e o ressurgimento dos partidos políticos, a grande força que carregou esse legado de defender na política institucional a ideia do povo enquanto cidadão foi o PT.

O PT e a direita


Após mais de dez anos de tentativa, o PT enfim chegava a presidência, para o terror da direita burra brasileira. Sim, porque a direita esperta estava governando junto com o PT e se beneficiando disso. Lula não governou por dois mandatos implantando o comunismo, governou atendendo aos interesses da elite. O governo do PT nunca foi antiburguês como a direita burra acredita. Aliás, sempre foi consenso no marxismo brasileiro que antes de tudo é preciso tornar o Brasil um país capitalista, desenvolver uma burguesia nacional, tirar o país do atraso estrutural em relação ao primeiro mundo².

Mas é claro que isso não é do conhecimento da direita burra, por um fator muito simples: a direita burra é guiada pela direita desonesta, na figura de astrólogos, grandes mídias e espertalhões conservadores. Esses aí sabem muito bem o que fazem, e não fazem por "ideologia", já falei sobre como as ideias para esses são nada mais que pretextos para seus próprios interesses. São eles quem, na ausência de argumento melhor, ressuscitaram até a Guerra Fria. Quem não aceita os resultados das eleições quando perdem, quem depõe uma presidente que virou as costas para seu eleitorado para atender os interesses deles próprios, simplesmente porque ela não é do clubinho e deixava rolar solta a investigação que ia acabar com o grosso dos representantes oficiais da elite no congresso.

O PT não é nenhum santo, só chegou ao poder porque se aliou com parte dessa sujeira e desceu ao seu nível, mas a elite brasileira acredita em sangue, em berço, e a origem popular de um partido é suficiente para sabotar o país inteiro para tirá-lo do poder, por mais que ele não seja, na prática, muito diferente dos outros.

Conclusão


O que eu quero com tudo isso não é apenas acusar, mas que tenham em mente qual é o núcleo da disputa política brasileira, e ela esta está muito longe da Guerra Fria, de mudar a cor da bandeira e muito longe de Marx.  A história é um continuum e ela nos mostra muito bem os grandes interesses em disputa ao longo do tempo. A grande batalha não é nova e é pelo lugar do povo no Brasil. Se posicionar politicamente no Brasil é, necessariamente, ou aderir a um projeto que tenta manter e dar continuidade à ordem social historicamente estabelecida, ou a um que tenta consertá-la. Todo o resto é secundário.

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¹ Quem se interessar pelo tema pode ler "O espetáculo das raças" de Lilian Schwarcz. No livro ela resgata detalhadamente a história das teorias raciais no Brasil. Como aperitivo, deixo esta entrevista para o Drauzio Varella, onde ela fala um pouquinho sobre a questão racial no Brasil.
² Caio Prado Jr chega a dizer que o Brasil não tem uma "burguesia nacional", que normalmente é interessada no desenvolvimento da indústria e do capitalismo nacional, pois dele se beneficia. Segundo o autor, no Brasil, a chamada burguesia sempre se beneficiou do modelo colonial e imperialista, sem projeto nacional.

* Créditos das imagens: Humans of Protesto

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