A filosofia de Engenheiros do Hawaii. Pt. 1: A indústria cultural

"Acenda uma vela pra Freud Flintstone"?, "o papa é pop"? "a violência travestida faz seu trottoir"? "meu pipi no seu popô"?


Das bandas que conseguiram atingir o mainstream do rock nacional, a banda gaúcha Engenheiros do Hawaii sempre foi aquela com as letras mais herméticas, que mais me faziam indagar "o que esses caras estão tentando dizer"? Mais do que isso, as que mais pareciam de fato estar dizendo alguma coisa. Então, aqui estou eu, "atrás de palavras escondidas", nas entrelinhas do horizonte dessa banda.

Como ela tem mais de 20 anos de história, muitos álbuns e muitas temáticas trabalhadas em suas músicas, decidi dividir o post por partes, cada uma com um tema. Além disso, esse é o primeiro post de uma série que eu quero dar continuidade, analisando a filosofia expressa em músicas de bandas e cantores, os seus sentidos escondidos... o que quase sempre acabará em forçação de barra, mas vamos lá.

 

Bio-discografia 

 

(Momento Wikipedia - quem não estiver interessado na contextualização da banda, ou caso já a conheça bem, pode pular ao próximo tópico "Indústria Cultural" sem muito prejuízo para o entendimento do texto)

A banda Engenheiros do Hawaii foi formada em 1985 por Humberto Gessinger (voz; guitarra), Carlos Maltz (bateria), Marcelo Pitz (baixo) e Carlos Stein (guitarra), que depois se juntaria ao Nenhum de Nós. Os quatro eram estudantes de arquitetura da UFRGS e a ideia era tocar num festival da universidade. O nome da banda foi escolhido para sacanear os acadêmicos de engenharia que andavam com bermudas de surfista e tinham uma rixa com os estudantes de arquitetura. Porém, logo começaram a receber propostas para shows, a coisa ficou maior que a brincadeira acadêmica e naquele mesmo ano gravaram seu primeiro disco, Longe Demais das Capitais.

A sonoridade de Longe Demais das Capitais tende ao ska, ritmo que influenciou muitas bandas brasileiras de 80 e 90, como Os Paralamas do Sucesso e Titãs, diferente dos álbuns seguintes mais influenciados pelo rock progressivo e MPB. Porém, as letras já esboçam o que viria a seguir, com um forte tom de crítica política e social. Mesmo as músicas mais despretensiosas, "românticas", tinham um tom de crítica social. Além disso, há várias músicas com referências ao contexto político da Guerra Fria.

Após esse disco, Pitz e Stein deixam a banda. Gessinger assume o baixo e Augusto Licks entra na banda como novo guitarrista. Com essa formação, que dura até 1993, a banda lança 5 álbuns de estúdio e 2 ao vivo e adquire seu estilo característico, tanto em questão de sonoridade quanto de letras. Surgem as metáforas e autorreferências clássicas da banda, repetidas em outras músicas, os paradoxos, as críticas à indústria cultural e as referências ao existencialismo (coisas com as quais trabalharemos mais adiante). Nessa fase a sonoridade tem muita influência do Rock progressivo (Roger Waters é nominalmente citado em "Tribos e Tribunais").

Em 93 Stein deixa a banda e há uma briga jurídica pelo nome do conjunto, Gessinger e Maltz vencem. Entram na banda o guitarrista  Fernando Deluqui (ex-RPM) que insere mais peso nas guitarras e o tecladista e acordeonista Paolo Cassarin que dá um toque de música regional gaúcha. A banda volta a lançar um álbum em 1995, com "Simples de Coração". O disco foi produzido nos Estados Unidos e portanto há diversas participações estrangeiras no disco, inclusive partes cantadas em inglês, o que era inédito na banda. As letras desse disco tratam muito do conflito entre  o mundo e indivíduo, na política (Vícios de linguagem, A Perigo, A Promessa) e nas relações sociais (Algo Por Você, Simples de Coração), e também entre o acaso e o que depende de nós, sempre afirmando a vontade do indivíduo (Lance de Dados, Lado a Lado, Hora do Mergulho). Enfim, o mundo é pensado como um lugar de conflitos, um lugar opressor e aleatório e que, portanto, nossa felicidade depende de nós. "Se queres paz, te prepara para a guerra / Se não queres nada, descansa em paz" (Hora do Mergulho). Enfim, se falei mais desse álbum, é porque ele é o meu preferido.

Depois do Simples de Coração, Cassarin e Deluqui saem da banda, Maltz se dedica ao esoterismo e também sai da banda. Humberto Gessinger então cria o "Humberto Gessinger Trio", com Luciano Granja (guitarra) e Adal Fonseca (bateria), o trio lança um álbum homônimo, com uma sonoridade bem simples e guitarra pesada, mas igualzinho aos Engenheiros na temática. Inclusive, O "HG3" acabou voltando a se chamar Engenheiros do Hawaii por pressão dos produtores: o nome era grande e vendia mais e mais facilmente. Com essa formação e a adição de Lúcio Dorfmann (teclado), eles ainda lançariam mais dois álbuns, "Minuano" (1997) e "Tchau Radar" (1999), além do ao vivo "10.000 destinos" (2000). A sonoridade volta a conter mais ritmos regionais e folk, além de músicas mas melódicas com a adição dos teclados.

Dorfmann, Luciano e Adal saem da banda em 2001, em seus lugares entram Bernardo Fonseca (baixo), Paulinho Galvão (guitarra) e Gláucio Ayala (bateria). Com essa formação, os Engenheiros lançam mais dois álbuns, "Surfando Karmas & DNA" (2002) e "Dançando no Campo Minado" (2003). O som nesses álbuns é mais pop e algumas letras tem muitas referência a questões tecnológicas e da globalização, além de um pessimismo com a política.

Essa formação lança o ao vivo "Acústico MTV" em 2005, comemorando 20 anos da banda. O sucesso desse disco atraiu uma nova geração de fãs para a banda, ou fãs de um único disco. Paulinho Galvão sai da banda. Entra Fernando Aranha (guitarra) e Pedro Augusto (teclado). Em 2007 lançam outro álbum acústico o "Novos Horizontes", sendo este o último álbum da banda. Em 2008 Humberto Gessinger anuncia uma "pausa" da banda e se dedica a outros projetos, como o "Pouca Vogal", num duo com Duca Leindecker e lança álbuns solo.

A indústria cultural segundo os Engenheiros do Hawaii


Os estudiosos ligados à Escola de Frankfurt dizem que no capitalismo a produção cultural toma aspectos de mercadoria. Assim, a arte na modernidade se tornou uma indústria como qualquer outra, cuja finalidade é o lucro. Isso afeta radicalmente o produto dessa indústria, a cultura enquanto negócio esvazia o significado de seus produtos, e se há qualquer mensagem neles, esta entra por um ouvido e sai pelo outro, como diz Umberto Eco. Tudo vira entretenimento vazio.

Muitas músicas de Engenheiros do Hawaii falam disso, claro que eles não usam o termo "Indústria Cultural" em momento algum, porém, analisando suas letras fica claro suas críticas são reflexos dessa ideia. Alguns dos aspectos que marcam a filosofia da Escola de Frankfurt  é o pessimismo com a modernidade e a crítica à cultura e meios de comunicação no capitalismo. Tais características são também temas centrais em muitas canções dos Engenheiros.

Talvez o maior exemplo desse alinhamento esteja na música "O Papa é Pop". Aqui eles tratam como a indústria cultural atinge a tudo e a todos, ("Qualquer coisa que se mova é um alvo / E ninguém tá salvo"), de "páginas em branco", até o Papa. As referências aqui são à tentativa de assassinato do Papa João Paulo II e como até isso vira lucro para as revistas, jornais e demais ferramentas de comunicação da indústria. Nessa música eles também lembram que o próprio Rock é "pop"("Mas afinal o que é rock n' roll? / Os óculos do John, ou o olhar do Paul?"), criticando a postura de "diferentão" e de "crítica social foda" que alguns muitos roqueiros tentam disseminar. A grande sacada aqui é que, até para criticar a indústria cultural, é preciso participar dela ("O presidente é pop / O indigente é pop / Nós somos pop também").


Na música "Guardas da Fronteira" é ainda mais evidente o alinhamento com a visão frankfurtiana da indústria cultural. Na canção, a TV é retratada como um instrumento dessa indústria e da ideologia capitalista, limitações para as potencialidades do ser humano.



Aqui é falado como a produção de massa, que não tem outra finalidade além de gerar lucros entre um comercial e outro, alimenta e colabora com os males da atualidade, "a cegueira dos guardas da fronteira", isto é, contrabando e corrupção, e a "a cegueira das barreiras das fronteiras", a exploração de uma povo sobre o outro e limitações baseadas em territórios nacionais.

"3ª do Plural", lançada mais de 10 anos depois, completa a mensagem de Guardas da Fronteira: "Corrida pra vender cigarro / Cigarro pra vender remédio / Remédio pra curar a tosse / Tossir, cuspir, jogar pra fora / Corrida pra vender os carros / Pneu, cerveja e gasolina / Cabeça pra usar boné e professar a fé de quem patrocina". Tudo é feito em função da venda, e nesse sistema, até o nosso pensamento está a serviço de quem paga. "Eles querem te vender / Eles querem te comprar / Querem te matar, de rir / Querem te fazer chorar / Quem são eles? / Quem eles pensam que são?". Aqui, o indivíduo é reduzido a sua dimensão sentimental pela indústria cultural. Seja nos filmes, nos esportes, ou no jornalismo mal feito, só querem saber e controlar uma coisa do público: "como você está se sentindo?". Segundo as formulações de Adorno e Horkheimer, o controle da indústria se dá através do entretenimento.



Um aspecto fundamental da indústria cultural e que não fica de fora das letras dos Engenheiros, é  a propaganda. "Propaganda é a arma do negócio / No nosso peito bate um alvo muito fácil". Em "A Promessa", Gessinger critica da propaganda através de metáforas de cunho religioso, como o Céu e o pacto com o Diabo. "O céu é só uma promessa / Eu tenho pressa, vamos nessa direção / Atrás de um sol que nos aqueça / Minha cabeça não aguenta mais / Tu me encontrastes de mãos vazias / E eu te encontrei na contramão / Na hora exata, na encruzilhada, na highway da superinformação / Estamos tão ligados, já não temos o que temer".



O capitalismo promete o Céu através da propaganda, de modo que o eu lírico encontra sua libertação desse falso Céu em um encontro com alguém, numa situação que lembra as histórias de pacto com o Pata Rachada. Lembro que quando era mais novo alguns amigos meus tinham até medo de cantar essa música por isso. Calma gente, primeiro que o Belzebu é gente boa, segundo que é só sobre propaganda e meios de comunicação ("Estou ligado à cabo a tudo que eles tem pra oferecer").

Em "Além dos Outdoors" ainda há um pouco sobre isso. Aqui há algo que é outro tema recorrente e que trabalharemos melhor nas próximas partes desse post, que é o pessimismo com a modernidade: "No ar da nossa aldeia há rádio, cinema & televisão / Mas o sangue só corre nas veias por pura falta de opção". O que ele está dizendo é que há uma infinidade de entretenimento e ainda assim um mal estar, como diria Freud, ou uma "depressão" social. Além disso o uso da palavra "aldeia", além de referência À ideia de "aldeia global" do Marshall McLuhan, é um modo de dizer que ainda somos primitivos, por mais que tentemos nos convencer do contrário (o quebra-cabeça se completa quando analisamos outras músicas como "Crônica" e "Freud Flintstone", mas como eu já disse, é tema para próximas partes). "Você sabe, o que eu quero dizer / Não tá escrito nos outdoors / Por mais que a gente grite / O silêncio é sempre maior". Os outdoors, símbolos máximos da propaganda e da linguagem da indústria cultural não são capazes de, como diria Adorno, exprimir mensagens emancipadoras, tudo é engessado e diminuído pela indústria. [Off-Topic] Outra interpretação possível e não excludente para esse refrão, que é o fato de as palavras nem sempre poderem exprimir bem nossas ideias e sentimentos.



Percebemos então, que a banda sabe muito bem no que está metida, tanto que fala muito sobre isso. Além disso, é importante destacar que existem outras interpretações, mais otimistas sobre a indústria cultural e seus efeitos na sociedade, porém fica claro com a análise das letras que os Engenheiros do Hawaii, ou pelo menos Gessinger que sempre foi o principal letrista, tende muito mais à visão frankfurtiana sobre os rumos da cultura no capitalismo. Pra finalizar, uma letra bastante explícita sobre isso. E até a próxima parte.


Ninguém sabe como serão os filhos desse casamento
Indústria da informação + indústria do entretenimento
Promessas de fusão à frio, diversão e conhecimento
A única escolha que temos é a forma de pagamento
Em doses homeopáticas, em escala industrial
Tudo acaba em samba, é sempre carnaval

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