Heranças malditas do cristianismo Pt. 1: O messianismo político

Começando mais uma série de postagens que provavelmente nunca vou concluir para falar de um tema que acho importantíssimo: aspectos herdados do cristianismo que embaçam vários rolês e embasam diversos comportamentos que atrapalham de algum modo a vida de muita gente.

---

Nossa história é repleta de momentos em que se esperou que algum indivíduo divinamente dotado de capacidades especiais consertasse as coisas. Cem anos depois de movimentos messiânicos como Canudos e  a Guerra do Contestado, da esperança do povo num bandido justiceiro, Lampião, no "pai dos pobres", Vargas, no "cavaleiro da esperança", Prestes, e mesmo depois das tragédias do fascismo e do socialismo com seus grandes líderes, ainda persiste na mentalidade política das massas uma esperança nos salvadores que vão consertar "tudo isso que tá aí". 

Em tempos de crise, os populistas aproveitadores e outsiders da política encontram solo fértil para suas cretinices. Se apresentam como aqueles que vão fazer o seu país great again, fazê-lo entrar nos eixos. A extrema-direita cresce no mundo todo, perde a vergonha de proferir seus discursos de ódio e taxar inimigos fáceis. A sensação que fica é a de que a humanidade é incapaz de aprender com seus erros.


"Culpe os imigrantes". Nomear inimigos fáceis é a melhor forma de atrair apoio conservador.

Há, portanto, uma tendência no nosso pensamento político de esperar que surgirá um salvador, e que devemos abdicar de algumas liberdades para que esses salvadores possam fazer seu trabalho divino. É importante que o leitor esteja atento ao fato de que esse pensamento, bem como a sociedade atual, não brotou do nada, e quando falamos da chamada "sociedade ocidental", temos que considerar que sua formação se deu sob a égide do cristianismo. Por quase 2000 anos essa religião regulou e legitimou praticamente tudo no mundo ocidental, do sexo à política, do nascimento ao funeral, do escravo ao rei.

Entre as mais importantes e influentes formulações do pensamento cristão, está o posicionamento de Agostinho de Hipona, sobre a dicotomia entre o mundo celeste "a Cidade de Deus" e o terreno "a Cidade dos Homens". Fazendo uma adaptação de Platão para o cristianismo, o teólogo afirma que o mundo terreno não é mais que um reflexo corrompido do mundo celeste, dessa forma, é preciso buscar uma imitação da Cidade de Deus, pois este sim é o mundo verdadeiro, sagrado, justo, belo, e tudo que há de bom.

Aplicando esse pensamento na política o que temos? Uma legitimação metafísica do poder, isto é, deve governar aquele que tornar a Cidade dos Homens mais à moda da Cidade de Deus. Imita-se a hierarquia celeste e o rei, neste caso, é aquele que ocupa o lugar que seria de Deus nessa hierarquia, um representante divino. É verdade que essa não é uma ideia originariamente cristã, aliás, o que é? Se cavarmos mais fundo vamos sempre achar raízes mais remotas, mas nos cabe aqui nossa influência mais próxima, que é o cristianismo. Sejamos genealógicos à moda de Nietzsche, uma vez que é o cristianismo que inspira a emergência desse pensamento do messianismo político em nossa sociedade.

Coroação de D Pedro II. O catolicismo era religião oficial e o papel da Igreja era central nesse tipo de cerimônias.

Cientes dessa noção metafísica da política, passemos ao ponto central, que é o messianismo. O messianismo que nos afeta, nasce da ideia judaica do salvador, que Deus haveria de enviar à Terra para salvar o povo judeu (povo escolhido do Todo-poderoso) de todos os seus problemas. Pois bem, uma seita judaica do século 1º afirmou que este salvador, um tal de Jesus, chegou, e veio para salvar não só o povo judaico, mas o mundo todo. Alguns milênios dessa ideia de que há pessoas especialmente escolhidas por Deus para fazer grandes coisas e salvar a nós, pobres coitados, tem, ao meu ver, impactos nefastos no pensamento político das sociedades afetadas pelo cristianismo. Junta-se a isso a escatologia e a visão teleológica da história, isto é, no pensamento cristão há sempre uma preocupação voltada para "o fim do mundo", o "juízo final", quando Deus vai acabar com o "pecado" do mundo, além da ideia de que toda a história se desenrola em função desse fim.

Temos então a fórmula da desgraça. Porções gigantescas de massa humana que veem a política: 1) como subproduto de uma ordem espiritual; 2) como espaço da reprodução da autoridade divina nas relações sociais; 3) como espaço de luta de um conflito que deve levar ao dia do juízo final, apocalipse, volta de Jesus, ou seja lá como cada vertente cristã chama o tal acontecimento; 4) como espaço a ser ocupado por "messias" salvadores especiais abençoados escolhidos por Deus.

Apesar da tão falada laicidade, muitos modelos de pensamento na nossa sociedade remetem ainda a uma base cristã, modelos que exercem sua influência muito além da porta da igreja. Até pessoas ateias sucumbem ao messianismo político, bem como setores historicamente rivais da Igreja, liberais e até comunistas. A grande mensagem aqui é que não fazer parte da fé cristã não nos torna livre de suas influências históricas.

Eu até entendo que um cristão realmente ache que aquele populista truculento que arrota burrice seja algum enviado de Deus. Mas constatar que ateus, céticos, ou mesmo ditos "liberais", caiam nesse tipo de lábia e fiquem presos nesse tipo de pensamento, é de doer.

Comentários