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Introdução
Os Estados Unidos, a partir do momento em que se constituíram como Estado independente, imaginam-se como um país “fadado ao sucesso”. É a ideia do Destino Manifesto, segundo a qual, “os EUA foram destinados por Deus ao sucesso [...]” (KARNAL, 2007, p. 26).
Segundo essa perspectiva, há um protagonismo natural dos EUA em termos globais. Protagonismo este que aparece de maneira ainda mais forte em relação aos seus vizinhos americanos, pela proximidade e interesses geográficos estratégicos. Mary Anne Junqueira aponta que “A ideia de que aquele país é um centro irradiador e que o restante da humanidade inevitavelmente o seguirá, é uma versão da história norte-americana possível de ser encontrada não só na academia, mas também na “cultura média norte-americana”” (JUNQUEIRA, 2001, p. 10).
Além disso, os mitos sobre os quais se funda a identidade norte-americana contribuem para a consolidação desse pensamento de “excepcionalidade”. Tanto os primeiros povoadores, os “peregrinos” (protestantes, presbiterianos e puritanos ingleses) que se consideravam um povo eleito, os “novos hebreus”, quanto os chamados pais fundadores (founding fathers), não seriam simplesmente homens comuns, mas sim homens dotados de uma predileção divina. Junqueira comenta que:
Com a ideia de excepcionalidade, os norte-americanos conferiram valores superiores a si próprios. O resultado é que nem sempre reconhecem culturas que sejam diferentes da sua. Muitas vezes são consideradas inferiores, exceção feita às culturas de países como Inglaterra e França (JUNQUEIRA, 2001, p. 12).
Desse modo, começa-se a desenhar uma perspectiva de que o papel dos vizinhos americanos é o de seguir a liderança dos EUA. Com exceção do Canadá ao norte, que mescla sua herança inglesa e francesa, sendo assim, de certa forma visto como igual dos Estados Unidos, os vizinhos ao sul, de cultura ibérica em sua maioria (mas não somente estes), passaram a ser vítimas de estereótipos que vão se sintetizar no grande estereótipo de Latin America, que abarca, basicamente, tudo que está ao sul dos Estados Unidos no continente americano.
O conceito de Latin America
Segundo João Feres Jr. (2005), o termo “América Latina” aparece de forma relevante na França em meados do século XIX. “Sob o poder de Napoleão III floresceu a doutrina do panlatinismo, sustentada pela ideia da unidade de todos os povos de raça latina” (p, 52). O autor também ressalta que esse panlatinismo não significava igualdade, mas antes, uma vanguarda francesa frente aos outros países de língua e tradição latina, numa ideia de rivalidade entre os países latinos e os germânicos e anglo-saxões. Além disso, pontua que é interessante notar que as palavras “latina” e “raça” aparecem associadas, uma vez que a ideologia do panlatinismo surgia no mesmo momento do crescimento dos nacionalismos e a busca pela unidade linguística e racial pelos países europeus (Ibidem).
Uma das ambições do panlatinismo, e que merece destaque, era a de submeter as antigas colônias ibéricas à influência francesa. Napoleão III chega a invadir o México e instituir uma monarquia dos Habsburgo, que cairia pouco depois frente forças republicanas. O monarca francês ainda teria planejado uma invasão dos Andes e a construção de um canal na América Central que ligasse o Oceano Pacífico e o Atlântico (FERES JR., 2005, p. 53), plano este que mais tarde o imperialismo estadunidense veio consolidar com a criação não somente do Canal do Panamá, mas do próprio país Panamá.
Feres Jr. aponta, contudo, que foi em língua espanhola que o termo “América Latina” foi primordialmente utilizado. Encontrando-se no poema “Las Americas”, de Caicedo, escritor colombiano. Caicedo propunha “a formação de uma confederação de repúblicas latino-americanas para resistir a agressão que vinha do norte” (FERES JR., 2005, p. 54). Isso num período em que ao expansionismo norte-americano já havia engolido metade do México e invadido a Nicarágua (Ibidem).
Nos Estados Unidos, o termo “latin america” surge como um substituto para “Spanish America”. Este segundo temo já carregava consigo estereótipos negativos devido a história entre os Estados Unidos ainda coloniais e suas disputas com a Coroa Espanhola e seu catolicismo. O temor da poderosa Real Armada contribuíra para um sentimento antiespanhol nos colonos norte-americanos. Este sentimento ficou conhecido como “Lenda Negra”, que se constituíam basicamente em relatos de como os espanhóis eram cruéis e cometiam maus-tratos em suas colônias (FERES JR., 2005, p. 56).
Nos primeiros governos americanos, a cultura hispânica é vista como autoritária, incapaz de formar uma república livre e democrática, desprovida de atributos morais elevados, o catolicismo essencialmente incompatível com os ideais republicanos, e nas palavras John Quincy Adams, quinto presidente norte americano, “[os espanhóis] são vadios, sujos e malvados, em suma, seria justo compará-los a uma vara de porcos” (ADAMS, apud, FERES JR., 2005, p. 57). Feres Jr observa que cada atributo negativo atribuído aos hispano-americanos, correspondia a um atributo positivo equivalente dos anglo-americanos (Idem, p. 59).
Até então, a raiz das adjetivações dos “latino-americanos” tinha muito mais a ver com a tradição católica. Porém, a partir da guerra com o México e a anexação do Texas, momentos em que o contato dos antes isolacionistas Estados Unidos com os vizinhos do Sul cresce, esses estereótipos ganham contornos racistas (FERES JR., 2005, p, 61). Se o escravismo nos Estados Unidos já havia consolidado ali pesados estereótipos negativos associados à negritude, como a preguiça, indolência, má vontade e desonestidade (GENOVESE, 1998, p, 451), a coloração mais escura dos mexicanos era um argumento em favor da supremacia do Norte.
No final do século XIX já há charges retratando a tentativa de domínio político dos EUA sobre países latino-americanos. |
Começam as alusões à mestiçagem dos mexicanos como uma característica que garantia uma inferioridade automática e absoluta. “Enquanto o Eu coletivo identifica-se como branco, projeta sobre o Outro uma categoria genérica e abrangente de não-branco, exprimida através de uma diversidade de categorias raciais: mestiços, índios, espanhóis negros, etc” (FERRES JR., 2005, p. 62). Tais representações passam a justificar a Doutrina Monroe, que colocava os Estados Unidos como “defensores” da América contra os interesses europeus, e que marca o início das muitas intervenções armadas nos países americanos ao sul dos EUA. Segundo Mary Anne Junqueira (2001): “Consolidou-se no americano médio, uma dificuldade em ver o “outro”, de reconhecer as diferenças culturais como algo importante e positivo” (p. 35).
A Doutrina Monroe advogava uma supremacia estadunidense nas Américas, contra os interesses europeus. |
Latin America passa a servir, portanto, para designar de maneira inferiorizada tudo aquilo que está ao sul dos Estados Unidos. “O nome de um povo [americans] tornou-se o contraconceito para todo o resto, que foi reunido sob um nome coletivo que era simplesmente negativo (Latin Americans)” (KOSELLECK, apud, FERES JR., 2005, p. 77). O autor conclui, dessa maneira, que Latin America, mais do que um conceito, é um contraconceito, se apresentando como uma classificação genérica dos “latino-americanos” como tudo aquilo de negativo que os norte-americanos, autorreferidos apenas como “americanos”, não são. Na própria apropriação do gentílico “americano” transparece o não-reconhecimento dos demais povos americanos como iguais.
Bovo (2009) faz uma importante ressalva à conceituação de Feres Jr., que é a de simplesmente culpar os Estados Unidos como nosso algoz, “culpando-o por nossos próprios tropeços” (p. 355). Ela aponta, entretanto, que Feres Jr. tem muito cuidado em situar historicamente de forma muito precisa os conceitos desenvolvidos, de forma a não justificar um enaltecimento de uma identidade latino-americana baseada na degradação da norte-americana, ao contrário, sua análise propiciaria ferramentas para que a “Latin America” possa repensar sua própria identidade de forma a fugir de estereótipos generalizantes e inferiorizantes (ibidem).
Wilderness: representações geográficas da América Latina
Uma das questões que marcam a identidade norte-americana, e consequentemente a maneira como se representa aqueles que estão para além (ou aquém) dessa identidade, é a questão do mito da fronteira. É o historiador estadunidense do século XIX, Jackson Turner, que, num contexto de grandes transformações nos Estados Unidos, vai usar o “mito da fronteira” como ideia unificadora entre o passado “descentralizado e de pequenas aldeias” e o presente industrial e urbano.
A ideia é a de que a expansão do território estadunidense está completa, os Estados Unidos são, basicamente, um país territorialmente completo: a fronteira se fechou. Porém o que vai caracterizar a identidade estadunidense é justamente o processo de conquista dessa fronteira. É essa experiência de fronteira que marcaria o caráter “americano”, uma vez que é a experiência de fronteira que divide a “civilização” da “barbárie”. A fronteira, chamada de “free land, Great West, Wilderness”, deixa de ser um mero espaço geográfico e se torna um espaço de representações desses espaços e quem os habita (MELLO E SOUZA, 2008, p. 54).
De acordo com Mello e Souza (2008), a palavra “wilderness” é a chave para entender a identidade norte-americana, principalmente o modo como ela é trabalhada por Turner (p. 56). A palavra pode ser traduzida como: “deserto, ermo, sertão, solidão região inculta, imensidão” (JUNQUEIRA, 2001, p. 327). A própria história dos Estados Unidos é identificada pelo historiados Roderick Nash através de sua dominação e transformação do “wilderness” que era o leste da América do Norte quando ali chegaram os colonizadores (Ibidem) e que depois seria o West, em parte ermo e em parte dominado pelos "bárbaros", indígenas e mexicanos.
Em seu sentido mais antigo, wilderness era utilizada para caracterizar florestas, lugares selvagens e habitados por seres igualmente selvagens, lugares onde o indivíduo se sente desnorteado, de forma que a relação mais básica com esse ambiente é a de estranhamento.
Há ainda os sentidos positivos para o wilderness, para Thoureau, por exemplo, é no wilderness que se encontram as características mais essenciais e positivas do homem. As correntes mais transcendentalistas do movimento ecológico buscaram igualmente, valorizar positivamente o wilderness (JUNQUEIRA, 2001 p. 329).
Um cara que levou o conceito positivo de wilderness longe demais. |
É fundamental compreender a ideia de wilderness no imaginário norte-americano, uma vez que é com essa palavra que muitas revistas e publicações americanas vão identificar os espaços geográficos da América Latina. É o caso da revista Seleções, uma publicação brasileira da Reader’s Digest entre as décadas de 1940 e 1970.
As representações mais básicas eram as de uma América Latina despovoada, com vários territórios vazios. Seguiram-se os estereótipos negativos, de atraso e primitividade, que só poderiam ser sanados se os países latino-americanos seguissem o exemplo dos EUA. “Na perspectiva da revista, este era o único modelo possível, não porque fosse considerado o mais adequado ou mais viável, mas porque era entendido como universal” (JUNQUEIRA, 2001, p. 338).
É curioso o fato da revista ter feito sucesso no Brasil apesar de carregar representações tão negativas da América Latina. Junqueira afirma que é preciso considerar o fato do brasileiro não se sentir latino-americano, sempre houve um sentimento de separação entre o Brasil e o resto do continente, também retratado por intelectuais e pela mídia brasileira como um espaço negativo e atrasado. (JUNQUEIRA, 2001, p. 339).
Claro que o imaginário estadunidense sobre a "América Latina" desconsidera essas diferenças internas, colocando todos seus países nessa mesma condição de nações para além da fronteira, o wilderness, o Outro.
Referências
BOVO, Cláudia Regina. Resenha de: FERES JR., João. A história do conceito de Latin America nos Estados Unidos. Bauru: Edusc, 2005, 317 p. Anos 90, Porto Alegre, v. 16, n. 29, p. 351-355, jul. 2009.
FERES JR., João. A história do conceito de Latin America nos Estados Unidos. Bauru: Edusc, 2005.
GENOVESE, Eugene. A Terra Prometida: o mundo que os escravos criaram. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1998.
JUNQUEIRA, Mary Anne. Estados Unidos: a consolidação da Nação. São Paulo: Contexto, 2001.
___________. Representações políticas do território latino-americano na Revista Seleções. Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 21, nº 42, p. 323-342, 2001.
KARNAL, Leandro. A formação da Nação. In: KARNAL, Leandro [et al]. História dos Estados Unidos: das origens ao século XXI. São Paulo: Contexto, 2007.
MELLO E SOUZA, Melissa. Brasil e Estados Unidos: Nação Imaginada. Brasilia: Fundação Alexandre de Gusmão, 2008.
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