Antes do futebol

Normalmente, fala-se das pirâmides do Egito como notáveis exemplos da engenhosidade e genialidade humana. Pois para mim é o exato oposto, nada retrata tão bem a estupidez e a capacidade da humanidade de tornar uma existência cruelmente absurda... mais absurda ainda. 

Vejam bem, tudo começou quando, no início de nosso desenvolvimento enquanto espécie, tivemos que nos confrontar com a morte. E sabem como é o ser humano, né? Quando ele não sabe absolutamente nada sobre algo, ele inventa. 

Completamente confusos sobre como um ser que há pouco tempo corria, soltava grunhidos e estuprava suas companheiras de espécie (e de outras), agora jazia inerte no chão, imaginaram que a parte viva deste ser (a alma) só poderia ter partido para outro mundo, tendo deixado para trás o corpo vazio. Por algum motivo, inferiram que esse outro mundo ficava abaixo da terra e era preciso reconectar de algum modo essas duas partes. Por isso, enterravam com o corpo morto seus gloriosos pertences (seu porrete de estimação, colares, paus e pedras, em suma), para que continuassem a pertencer ao falecido nesse outro mundo para o qual ele foi. Eu sei, não faz muito sentido.

E como o ser humano nunca está satisfeito com nada, alguém achou que o ritual devia ser incrementado. Então passaram a empilhar umas pedrinhas onde o corpo era enterrado, para marcar o local sagrado onde jaziam os queridos companheiros de estupro. Empilhar umas pedrinhas, guardem isso.

O tempo, meus amigos, o tempo é um sacana, daqueles do pior tipo. Vendo onde tudo ia dar, seria muito mais agradável se ele parasse, se explodisse, ou simplesmente migrasse para outra dimensão onde seria melhor amado pelos filósofos e poetas locais. Mas o tempo, esse Joselito cósmico, decidiu permanecer e continuar fluindo normalmente, dando infinita corda para as peripécias da humanidade.

Voltando às pedrinhas, a ideia pegou. E como é da humanidade que estamos falando, o empilhamento de pedrinhas se tornou o maior esporte competitivo que nosso planeta já viu. Em questão de poucas gerações, já servia como demarcador de classe social. Quanto mais rico, mais pedrinhas empilhadas, mais pontos no jogo. 

E como é da humanidade que estamos falando, não tardou para que surgissem empilhadores profissionais, engenheiros e designers de empilhamento de pedrinhas. Aquele montinho tosco logo se tornou uma lápide, uma tumba, mausoléu, até verdadeiros palácios erguidos por cima de um cadáver, sabe-se lá por quê. Ou sendo um pouco menos cínico, para até na morte gritar para o coleguinha: 'eu tenho, você não tem'.

Mas foi no Egito onde mais levaram a sério esse esporte. Os caras tinham uma fixação especial na morte, e como é de costume do ser humano, quando ele não sabe absolutamente nada sobre algo, ele inventa. Escreveram muitas obras sobre o tema, algumas delas foram encontradas, compiladas e ganharam na modernidade um título bastante macabro: "Livro dos Mortos". E não se  escrevia sobre qualquer coisa há 3 mil anos do mesmo modo que fazem hoje em dia. 

Os egípcios inventaram um dos mais elaborados pensamentos sobre o pós-morte. Delimitaram como deviam ser feitos funerais, como o cadáver devia ser preparado, preservado e todos os cuidados para que o morto fosse considerado um sujeito bacana no mundo dos mortos. E como é do costume do ser humano, todos acreditaram. Se já é caro lidar com as funerárias hoje em dia, imagina no Egito, com todos esses requisitos.

Então, quanto mais rico e poderoso era o morto, maiores eram os cuidados funerários que o cadáver recebia. Ninguém era mais rico e poderoso que o faraó. Os empilhamentos de pedrinhas dos faraós se tornaram tão grandes, que isso motivou os mais diversos avanços na arquitetura, geometria, matemática e engenharia, para que os montinhos pudessem continuar cada vez maiores. O formato final e definitivo foi a pirâmide. A pirâmide é o gol-de-bicicleta-de-fora-da-área do empilhamento de pedrinhas. Com a diferença de que não tem como o jogador de futebol ser sepultado embaixo de seu gol de bicicleta, pois estes acontecimentos não ocupam o mesmo lugar no tempo.

Enfim, o jogo que começou com pedrinhas empilhadas na Pré-história, terminou quando finalmente os comentaristas esportivos reconheceram que ninguém era melhor nisso que o tal do Queóps. Depois de sua apelação literalmente monumental ao mandar construir aquela pirâmide, Queóps foi nomeado "o Pelé do empilhamento de pedrinhas" e parece que o pessoal perdeu um pouco o interesse em competir pelo título de melhor do mundo. 

Agora as competições são locais e pontuais. Há 4 mil anos não acontece uma copa do mundo do esporte. O que era uma indústria bilionária dos faraós, movimentando centenas de milhares de pedrinhas, engenheiros e escravos, entrou em recessão e se tornou somente... milionária, movimentando milhares de pedrinhas, engenheiros e escravos - talvez isso tenha provocado a queda do Egito.

Tudo isso porque há algumas dezenas de milhares de anos, alguém não soube por qual motivo seu companheiro de estupro havia caído inerte e inventou uma história na qual ele mesmo e os demais estupradores acreditaram prontamente.

Como na modernidade surgiram alguns esportes mais interessantes que empilhar pedrinhas para ver quem é mais rico,  a cremação tem ganhado cada vez mais popularidade. A filosofia surgiu na Grécia, e não no Egito, possivelmente porque lá a cremação era mais descolada que o enterro.

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