Zen'Oh, o deus tolo: Dragon Ball Super e o gnosticismo

Quando apareceu Zen'Oh (ou Zen-Oh, ou Zen'Ou, ou fodasse mermão), o deus criador e criatura mais poderosa dos 12 Universos de Dragon Ball Super, minha reação foi uma decepção  - "mas o quê?! É isso?!" - seguida de um alivio cômico - "é claro, é Dragon Ball, o que eu esperava?" -. Ele é basicamente uma criança todo-poderosa, com toda a inocência (a.k.a ignorância) e a maldade que dela provém. O Multiverso de Dragon Ball está à mercê dos caprichos de um deus débil mental.

Zen'Oh em toda sua glória


Porém, se analisarmos mais atentamente, a personagem é simplesmente genial. O único deus possível no Multiverso de Dragon Ball é um deus retardado. É genial tanto do ponto de vista de conceito quanto de narrativa. Não só justifica todos os furos de roteiro, as bizarrices e quaisquer outras tolices típicas dos universos dos mangás, quanto abre muitas oportunidades de narrativa, e até a possibilidade de um aprofundamento nas questões morais, tão rasamente tratadas em Dragon Ball.

Por exemplo, ao convencer Zen'Oh de organizar um torneio entre os lutadores mais poderosos do Universo, simplesmente porque queria lutar com caras fortes e se aproveitando da simpatia que o todo-poderoso tem por ele, de repente, Goku virou um vilão, apesar de ser o mesmo Goku de sempre! Acontece que Zen'Oh decide que vai simplesmente apagar os universos perdedores.

O mais interessante, é que a situação cartunesca apresentada em Dragon Ball Super guarda uma grande semelhança com uma situação do mundo real, que é a interpretação de deus e da criação feita pelo gnosticismo. O gnosticismo foi um movimento do cristianismo primitivo, tinha caráter sincrético e esotérico, mesclava principalmente elementos de platonismo e cristianismo. Assim, como no platonismo, para os gnósticos havia uma incompatibilidade essencial entre a ideia (logos) e a matéria, de modo que o criacionismo gnóstico reflete esse ideal. Não há uma tradição única da criação gnóstica, mas vou tentar fazer um resumão mesclando o que eu acho mais básico e interessante para a finalidade em questão.

No gnosticismo, tudo se inicia com um ser supremo absoluto, completo, profundo (bythos), incognoscível, inalcançável, pleno, pai eterno inefável etc. Desse Uno absoluto, emanam outros aspectos da divindade em pares (sizígia), chamados de aeons, que são parecidos com o que Platão pensava por ideias perfeitas. Juntas, essas entidades formam o Pleroma (plenitude), que é tipo o mundo das ideias de Platão. Sophia (sabedoria), que é um dos aspectos femininos de Deus, em uma das tradições gnósticas teria tentado conhecer o Deus primeiro, incognoscível, o paizão fodão  impenetrável do universo, e nisso ela foi jogada para fora do Pleroma. Dessa Sophia exilada, perdida e confusa, surge a matéria, o espírito e o Demiurgo. Foquemos nele.

Ignorante de tudo, inclusive de Sophia que o gerou, Demiurgo pensa ser a divindade máxima do Universo, o uno. É esse Demiurgo, ignorante da realidade superior que o gerou, que cria, ou melhor, dá forma ao mundo material, uma cópia malfeita do Pleroma pleno e perfeito: a matéria é transitória, se degenera, não consegue sustentar a perfeição das ideias.

O pessimismo aqui é latente, um mundo imperfeito e degenerado, feito por um deus imperfeito e degenerado. Um mundo absurdo e sem propósito. Mais que isso, um mundo mal, de doença, sofrimento, decadência e morte. Um mundo onde a morte de um ser vivo por outro é a regra. Nesse sentido, Jesus seria a sizígia (o par) de Sophia que a resgataria de volta ao pleroma e fodam-se vocês mortais, reclamem com seu Demiurgo. Não preciso dizer que todas as variantes do gnosticismo foram consideradas heresias e perseguidas logo que a Igreja cristã foi tomando forma, mas esse é outro assunto.

Além do herói da Terra se chamar Satan, Dragon Ball ainda guarda semelhança com uma doutrina herética? Parece que sua mãe tava certa, né? Illuminati feelings.

O ponto é que Dragon Ball - por mais ingênua que a história seja em termos de construção narrativa - é o perfeito retrato desse mundo-cão gnóstico. A qualquer hora aparece um mutante espacial imperador da galáxia pra explodir a porra toda, androides e bio-armas que sugam a vida pessoas, sem propósito nenhum além de sair por aí destruindo tudo, ou um demônio rosa que te transforma em chocolate e te come. A qualquer hora um sayajin, ou qualquer criatura verde aleatória, pousa do teu lado e te explode sem que você tenha feito nada. E cadê Deus? Tá lá, brincando de bolinha de gude com planetas.

Um dos principais vilões de Dragon Ball Super, Zamasu, é a alternativa que  o autor apresenta a tudo isso. Zamasu é um aspirante a kaioshin, que são os deuses mais altos da hierarquia de Dragon Ball, abaixo de Zen'Oh, é claro. Os kaioshin são responsáveis por observar e cuidar do desenvolvimento da vida em seus respectivos universos. Porém, convencido da maldade inexorável da existência mortal, Zamasu quer exterminar toda a criação e encarnar, ele mesmo, aquela plenitude perdida, degenerada na vida mortal, material. Este seria, assim, o fim da maldade. Mas há outro deus mais poderoso ainda no Universo de Dragon Ball, Deus ex machina, e Goku e sua turma derrotam Zamasu.

Zamasu, o messias gnóstico de Dragon Ball

Nem sempre é tão fácil tirar boas reflexões de Dragon Ball, por isso a gente tem que aproveitar. Fica a questão: o que é pior, a autoestima da porra e a inescrupulosidade de Zamasu, ou a burrice insensível e egoísta de Zen'Oh?

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