Humanos X Cabras: um texto contraditório

Às vezes, quando as paixões não estão me queimando a pele (não há momento mais lúcido que o pós-orgasmático), penso que devo viver a vida como se eu estivesse a um passo da sepultura. Nesses momentos, me parece que ninguém pode ser mais sábio quanto ao que é importante do que alguém que não tem mais tempo a perder com "que roupa vou usar", "que casa quero ter" ou "com que vídeo vou bater uma hoje". É o presente vivido com a consciência do futuro inevitável que nos aguarda. Só nos preocupamos com essas banalidades ou esquecendo - deliberadamente ou não - das nossas verdades e condições mais básicas enquanto seres humanos, ou simplesmente sem nunca termos nos dado conta delas.

Nietzsche considerava que essa nossa relação com o tempo era o que mais nos caracterizava enquanto seres humanos. Uma cabra faz o que uma cabra faz sem imaginar o que uma cabra no leito de morte pensaria sobre suas ações de cabra. A cabra vive o aqui e o agora, de acordo com as paixões que lhe queimam a pele. O ser humano consegue pensar tendo em vista o futuro, "que roupa vou usar" remete a uma situação futura, onde essa roupa pode lhe trazer algum benefício ou malefício.

Dependemos do passado também. Toda a cultura humana é cumulativa. Alguém ter estabelecido que um som determinava o significado de alguma coisa foi o que criou a palavra, nossa linguagem. E a partir dessa, foi o fato de alguém estabelecer que uma figurinha, desenhada em qualquer coisa, era o equivalente de uma palavra que criou a escrita da qual agora me utilizo.

Acontece que nossa específica relação com o tempo molda nossa psicologia de um modo único neste planetinha. Temos cada vez mais amplamente registrado o passado, nos lembrando continuamente de tudo que nossas paixões, queimando a pele, queriam que esquecêssemos. Ao mesmo tempo, somos continuamente assombrados pelo fantasma do sofrimento e morte que se aproxima a cada segundo que passa.

A conclusão nietzschiana é que é necessário esquecer também. Se afogar entre os fantasmas do passado e do futuro não é o que o presente deve ser: uma celebração das paixões que nos queimam a pele (seguindo essa filosofia, Nietzsche supostamente morreu por complicações da Sífilis). Curiosamente, é pensando no futuro que eu me lembro dessa negação da consciência temporal. Num futuro específico, meu último futuro. O que eu faria se estivesse para morrer? 

Talvez devêssemos ser cabras.


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