Doutrinação nas escolas ou falta de cultura democrática?

Acho que estou um tanto atrasado no tema, mas sinto que deveria escrever algo sobre.

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Há poucos anos entrou no debate nacional uma suposta doutrinação esquerdista nas instituições de ensino nacionais, principalmente nas matérias de Ciências Humanas (História, Geografia, Sociologia e Filosofia). O sentimento que já existe de longa data no conservadorismo nacional, se materializou  atualmente em páginas e movimentos online, carregadas de um antiesquerdismo quase macartista, como a "Meu Professor de História Mentiu Pra Mim", "Revoltados On-line", "MBL" etc. Páginas de direita, negacionistas e revisionistas da história acadêmica, muitas vezes até financiadas por capital nacional e internacional, e que chamam de esquerdista ou comunista qualquer coisa que contrarie sua agenda ideológica. A união desses maravilhosos poderes desembocou em Projetos de Lei vergonhosos como o "Escola Sem Partido". 

Por um lado, acho natural que isso aconteça num país que não faz muito tempo saiu de uma ditadura de direita. A ascensão da esquerda no campo político provocou essa reação de uma direita que não está acostumada a uma livre circulação de ideias e debates em ambientes públicos; por outro, há o perigo do retrocesso, justamente pelo medo que essa direita tem de perder a hegemonia da opinião pública. E é desse ponto que eu gostaria de partir: da constatação que as ideias tradicionais, conservadoras e sempre alinhadas com a agenda direitista, sempre estiveram presentes nas instituições de ensino brasileiras, e é justamente no momento que entram em debate nas escolas assuntos que fogem dessa base conservadora, que se planta esse circo da "doutrinação esquerdista".

Te refutei

Em primeiro lugar, eu fico extremamente desconfortável com a alegação "estão doutrinando nossas crianças", acho não só uma alegação cretina, burra, mas principalmente desonesta. Começa pela distorção do sentido de "doutrinar". Doutrina é o conjunto de ideias fundamentais de um sistema moral ou de pensamento, portanto sempre teve um sentido positivo no discurso religioso e tradicional. Errado, nesse sentido, era se afastar da doutrina socialmente mais aceita, e esse é, inclusive, o próprio conceito de pecado, socialmente aplicado. É a partir do iluminismo, com a luta contra a dominação da religião nas esferas públicas que a doutrinação ganha sentido negativo, a "doutrinação religiosa" cai em desgraça com o crescimento do laicismo, tradição da qual a esquerda atual é descendente direta. Somente no século XX, os regimes de orientação comunista pós Revolução Russa, com seu modelo de partido único vão ser acusados de doutrinação pelas potências capitalistas ocidentais por causa da imposição de seu ponto de vista político sobre os mais variados aspectos da sociedade - inclusive na produção científica - e sua propaganda, feita nesse intuito. Um contexto que está muito, mas muito distante do nosso Brasil atual, de tantas diversidades e contradições. Apesar de que as pessoas autoras e apoiadoras do "Escola Sem Partido" provavelmente acham que vivemos uma ditadura comunista.

Além disso, a alegação de "doutrinação esquerdista" nas nossas escolas, parte de dois pressupostos absurdos. O primeiro é que o aluno é um depositório onde o professor simplesmente implanta suas ideias, uma relação realmente freudiana de professor aluno, o que está longe da realidade brasileira, com professores muito mal capacitados, mal valorizados e, principalmente, mal remunerados e alunos empurrados ano após ano pelo sistema precário. O segundo tem a ver com o currículo escolar. Faz-se parecer que só se estuda Marx, ou que este é apresentado como a ortodoxia frente aos outros filósofos e ideólogos políticos, o que é de uma desonestidade sem tamanho. O currículo escolar, inclusive, dá muito mais atenção aos filósofos humanistas, liberais (e) iluministas, dos séculos XVII e XVIII, e o marxismo entra basicamente para explicar as questões políticas dos séculos XIX e XX, fora os outros períodos históricos abordados, e os pensadores desses períodos, inclusive os teólogos cristãos da Idade Média, onde o marxismo simplesmente fica de fora da análise.

Tudo isso é ignorado, e sobre esses temas não há alegação de doutrinação. É um movimento bem identificável politicamente e com objetivos também bastante claros: banir, não só o pensamento de esquerda do debate escolar, mas o pensamento progressista em geral, como se toda discussão teórica sobre a contemporaneidade só pudesse se basear nos teóricos pré-aprovados por esse movimento, a própria definição de censura. Nesse sentido não poderia haver discussão sobre política, gênero, sexualidade, e por aí vai.


O engraçado, é que na maior parte do meu próprio ensino eu não tive nada disso alegado pelo "Escola Sem Partido". Pelo contrário, durante toda minha vida escolar, o que eu mais vivenciei foi professores rezando na sala, crucifixos em quase todas as salas de aula onde estudei, inúmeros eventos religiosos promovidos ou apoiados pelas escolas, e pouquíssimas e pontuais discussões sobre Marx, esquerda, comunismo etc. Ainda assim, quando esses assuntos apareciam, era algum professor a dizer como o Bolsa Família era para sustentar vagabundo ou como o 'comunismo matou bilhões'. A maioria dos alunos sai da escola sem saber o básico, que dirá então sair 'doutrinado' politicamente. A grande maioria dos meus colegas saiu do ensino básico com um pensamento e discurso completamente de senso comum, desengajados, despolitizados e reprodutores do que é veiculado na grande mídia, nem por isso eu saio por aí acusando todas essas instâncias e instituições de ter doutrinado essas pessoas. As pessoas tem autonomia.



Por trás das construções discursivas, o grande conflito aqui é pelo lugar do Estado na educação. O conservadorismo acha que a educação moral e política é competência única dos pais, os quais devem dizer no que o filho deve acreditar e educá-los naquilo que acham certo. À escola caberia apenas passar o bom e velho saber técnico-instrumental, como se a escola à moda antiga não estivesse carregada até a tampa de ideologia; do outro lado estão os movimentos sociais e setores progressistas, que tem o mínimo de bom senso para perceber as atrocidades do dia a dia brasileiro - como o país que mais mata trans, homossexuais e mulheres no mundo, como um país racista, extremamente desigual -  e acreditam que esses debates não podem faltar ao currículo escolar. Nesse sentido, uma escola que debate esses temas, longe de doutrinar, está apresentando aos alunos e colocando em debate toda a diversidade presente na sociedade e os problemas práticos, reais, que dela surgem. 


A escola realmente não deve ter partido, pelo contrário, deve abrir debates e apresentar as diferentes interpretações teóricas do mundo, deve estar, portanto, aberta a essa pluralidade, o que é o mais próprio da democracia. Mas não é isso que esse tipo de projeto busca, o que busca é uma hegemonia ideológica conservadora, e varrer tudo que não se encaixa nessa visão de mundo para debaixo do tapete.

Eu, como bom ateucomunopetistagayzistasatanista tenho meu lado e deixo a pergunta, se na escola o brasileiro médio já não aprende quase nada, onde mais ele iria participar dessas discussões? 

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