Bakuman e o campo social

Capa do primeiro volume de Bakuman.

Assisti recentemente o anime 'Bakuman', baseado fielmente ao mangá homônimo escrito por Tsugumi Ohba e ilustrado por Takeshi Obata, mesma dupla responsável por Death Note. Em resumo, a história é uma versão em mangá da carreira dos próprios autores.

Bakuman conta a história de Moritaka Mashiro e Akito Takagi, dois jovens colegiais que se juntam com o sonho de serem os mangakás número 1 do Japão. Mashiro e Azuki Miho - uma colega de classe que sonha ser dubladora - se declaram um para o outro, e prometem que apenas irão casar quando um mangá de Mashiro virar anime e Azuki se tornar a dubladora da heroína. Dessa forma, a história narra todo o esforço da dupla de jovens mangakás - que adota o pseudônimo de 'Ashirogi Muto' - para chegar ao topo da indústria dos mangás e conseguir o primeiro lugar em popularidade na revista mais popular do gênero, a 'Jack', paródia da Shonen Jump, publicadora de títulos como Dragon Ball, One Piece, Naruto,  Death Note, da mesma dupla e do próprio Bakuman.

Os personagens principais de Bakuman.

O grande diferencial da obra é como a partir das fórmulas tradicionais do storytelling dos mangás - a Jump é uma das revistas mais conservadoras nesse quesito - Bakuman consegue tratar de toda a dialética da indústria de mangás: os conflitos entre autores e editores, entre editores e a própria administração da revista, a rivalidade entre autores, a relação entre autores e assistentes e as implicações públicas de suas obras (uma referência às polêmicas causadas pela temática pesada de Death Note). Além de ser uma obra que transita muito bem entre a comédia e o drama.

Cada uma dessas pequenas tensões é levada à proporções épicas, e apesar dos autores serem muito hábeis em transformar esses confrontos, tão reais e cotidianos no mundo do trabalho, em algo grandioso e emocionante, em certo ponto tornam-se previsíveis e cansativas as mesmas expressões de surpresa diante de qualquer acontecimento. Por outro lado, os autores são geniais em apresentar novos personagens e novos arcos dramáticos, sempre mantendo a história interessante, e demonstrando total maestria da estrutura narrativa do mangá. E o melhor de tudo: é exatamente isso que vemos a dupla Ashirogi Muto fazer no decorrer da história, como um reflexo dos autores reais do mangá. 

Tudo merece uma expressão caprichada de surpresa. O editor Hattori que o diga.

Como uma obra que abusa da metalinguagem, descrevendo na própria obra a indústria que a produziu, o conceito de 'campo social', do sociólogo francês Pierre Bourdieu pode nos ajudar a compreender um pouco melhor os sentidos de Bakuman e porque ele é tão interessante.

A teoria desenvolvida por Bourdieu visa entender as relações de poder na sociedade contemporânea através de uma divisão simbólica da sociedade em campos. Cada campo possui agentes próprios que disputam o 'poder simbólico' dentro dele. Poder simbólico é assim chamado porque ele não se demonstra através da força, como se pensa comummente, mas através das características específicas de cada campo. Por exemplo, um agente poderoso na indústria dos mangás, se colocado no campo esportivo, para jogar futebol, ou no campo médico, para pesquisar uma doença, não terá poder simbólico nenhum, uma vez que saber produzir ou entender de mangás não vale de nada ali. 

São os agentes dominantes de um campo que legitimam as práticas e as representações dentro daquele campo e estabelecem um 'habitus', isto é, o conjunto de valores e comportamentos próprios de um campo, que seus agentes incorporam como seus. É o editor-chefe da revista publicadora é que vai decidir se um mangá deve ser publicado ou não e por quê, e o mangaká internaliza essas diretrizes como habitus, isto é, vai criar mangás conforme o que foi definido pelo dominante. 

Editores em reunião de serialização,para decidir quais mangás serão publicados.

Do mesmo modo, cada campo tem 'troféus' próprios, que legitimam os agentes dominantes de um campo, quanto mais troféus, mais poder simbólico. Por exemplo, quanto mais votos, mais poderoso um político; quanto mais dinheiro, mais poderoso o empresário; quanto mais diplomas e títulos, mais poderoso o acadêmico; quanto mais vendas, mais poderosa a revista de mangás. Um campo social é movido pelas disputas de seus agentes por esses troféus.

Bakuman é um laboratório de representação das lutas do campo social dos mangakás. Trata exaustivamente a relação agridoce (ou disputa pelo poder simbólico) entre editores e autores, se por um lado os editores instruem os autores em muitos aspectos relativos a qualidade de um mangá, por outro lado é ele que padroniza e por fim legitima (enquanto representante da revista) como um mangá deve ser escrito enquanto produto da revista. Do mesmo modo o autor tanto pode ter no editor alguém que corrija erros e aponte soluções, como alguém que acaba alterando a obra num sentido que desagrade o autor. Também não se pode esquecer a participação do público, outro agente muito importante desse campo, uma vez que é o número de vendas o grande troféu do campo dos mangás semanais. A emoção do mangá reside justamente em acompanhar o desenrolar do embate entre esses agentes.

Ashirogi Muto confrontando seu editor, Hattori.

Em se tratando das motivações de um agente social, Bakuman não é hipócrita, Ashirogi Muto quer chegar ao topo da indústria de mangás pela glória de chegar ao topo, a realização de seus sonhos pressupõe a obtenção dos mais altos troféus do campo mangaká. Nesse sentido Bakuman dialoga perigosamente com a ética tradicional japonesa, onde ou você é um vencedor, ou é um bosta e é melhor se matar.

Na cena em que o Mashiro (o desenhista da dupla Ashirogi Muto) é internado por excesso de trabalho, o que vemos no mangá é a glorificação da atitude do personagem por estar dando o máximo de si para conseguir os troféus de seu campo a despeito de sua saúde física. Ainda que Bakuman represente essa situação como um 'problema' comum na indústria dos mangás e animes, a obra toma, por fim o lado da admiração para com aqueles que se esforçam até a morte pelo troféu de seu campo - o caso do tio de Mashiro, um dos heróis da trama que desenhou até morrer na mesma empreitada. Melhor morto do que perdedor. Os japoneses levam o campo social que disputam muito a sério.

Mashiro após quase morrer por exaustão sendo incentivado por sua namorada a desenhar enquanto internado no hospital.

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Os 176 capítulos de Bakuman, foram publicados semanalmente pela Shonen Jump entre 11 de agosto de 2008 e 23 de abril de 2012, sendo compilados em 20 volumes. O anime, dividido em três temporadas de 25 episódios, foi produzido pelo estúdio J.C.Staff e transmitido entre 2010 e 2013. 

No Brasil, os 20 volumes de Bakuman foram publicados na íntegra pela editora JBC e você pode comprar a obra ->aqui<-.

Em caso de dúvidas com o conceito de campo de Pierre Bourdieu, você pode conferir o canal do Robson Lima no youtube, com ótimos vídeos sobre o tema, como o vídeo abaixo:


Para os mais animados com Sociologia, e que querem se aprofundar no tema, recomendo esse curso em áudio do Clóvis de Barros Filho sobre Pierre Bourdieu, disponível também no youtube:

https://www.youtube.com/watch?v=SIF55TfOQEQ

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