Morte e cristianismo

Tive de lidar com a morte cedo. Meu pai morreu quando eu tinha 9 anos. Acidente de carro. Ele era taxista, desses de cidade pequena que transportam passageiros de uma cidade à outra. Lembro-me vividamente de seu rosto inchado no caixão, uma caricatura do que era.

Pode parecer chocante, mas na época não me lembro de ter ficado triste. A razão é simples: Éramos adventistas, de modo que a morte não era nada perto da promessa da vida eterna. Ora, ao morrer não iríamos apenas "dormir" até a "volta de Jesus", onde todos ressuscitariam e viveriam felizes para sempre no país do pirulito? O apóstolo não disse que "viver era cristo" e "morrer era lucro", e que os que sofrem diante da morte são aqueles que não conhecem "O Senhor"? Essa era a crença basilar daquela religião, mas a comoção parecia denotar outra coisa. "Você não entende que seu pai morreu?", me perguntavam. Pensando nisso agora, só posso dizer que nada se assemelha mais à fé religiosa do que a ingenuidade de uma criança.

Meu avô, que foi meu segundo pai, morreu sete anos depois. Câncer de pulmão, após uma vida inteira devotada ao cigarro. Dessa vez eu já era ateu e dessa vez sofri. Por mais terríveis que tenham sido seus últimos dias de dor intensa e dopagem de remédios, por mais que a morte fosse anunciada, quando ela chega ainda é um choque. É a única certeza desta vida e é sempre um choque.

É curioso como uma sociedade cristã, mesmo tendo na morte uma promessa de ressurreição, ou vida após a morte (dependendo da vertente), tem um tabu tão grande a seu respeito. Pior, atrasa a vida de quem só quer morrer em paz, como nos casos de eutanásia e do suicídio assistido. O cristianismo tem tesão no sofrimento. Este mundo para eles é sofrimento, e só quem o suporta com fé e até o fim é quem merece as honras do pós-vida. Religião da tortura, pior que uma religião da morte. Em alguma medida, o cristianismo é até mesmo uma negação traumática da morte.

O filme "O Sétimo Selo", de Ingmar Bergman, é até então a melhor obra artística que eu já vi sobre os temas morte e religião. Ele se inicia quando o protagonista, um cavaleiro medieval, reza em frente ao mar, logo ao chegar em seu país após uma cruzada. Porém, quem se manifesta para ele não é Deus, mas sim A Morte, que lhe anuncia seu destino. O cavaleiro tenta adiar sua sina, desafiando A Morte para uma partida de xadrez. Enquanto adia o jogo, tentando ganhar tempo formulando estratégias para vencer A Morte, o cavaleiro percorre seu país devastado pela peste, buscando a Deus ou a qualquer verdade superior. Mas, além da própria Morte, não encontra nada além de seres humanos, demasiado humanos: principalmente os que falam em nome de Deus, um deus "mudo e que talvez não exista".  

A vida é um jogo onde adiamos a morte. A morte ganha no final.

A morte ganha no final.


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