Stranger Things, serviços secretos e o Estado: quem é o monstro e o que é o mundo invertido?

Stranger Things dispensa apresentações mas vou apresentá-la mesmo assim, é aquela mistura gostosa de ficção científica, suspense e nostalgia. Acontece que mesmo que a série seja fruto de um acúmulo de referências pop nostálgicas e ambientada nos anos 80, ela conta uma história nova com significados também atuais. Que a nostalgia não engane: está tudo a serviço do presente, até porque se não estiver, não dá certo.

Veja, por exemplo, a subversão de protagonismos com a década retratada. Se nos anos 80 os 'nerds' sofreram o pão que o diabo amassou em suas experiências escolares, na série é, quase sempre, tudo deles. E se 30 anos atrás o protagonista seria o adolescente popular jogador de basquete, aqui ele é só um bosta que ninguém gosta (poético) - o herói oitentista, hoje, precisa de um arco de redenção para se tornar suportável. Além das mudanças na retratação do universo infantil, há também a superação da dicotomia entre crianças sapecas e adultos raivosos, bem característica dos anos 80. Mas deixemos essas questões de linguagem narrativa um pouco de lado.

Pois bem, na série temos essa instalação do governo que desenvolve pesquisas secretas, entre elas, essa sobre uma dimensão paralela à nossa que os protagonistas chamam de 'mundo invertido' (upside-down). O mundo invertido é igual, porém oposto ao nosso: escuro, frio e em ruínas, com partículas de sujeira por todo o ar e muita gosma em tudo, como não podia faltar talvez não seja tão oposto assim. O pior é que essa dimensão tem suas próprias criaturas, sombrias, frias e mortais; bem adaptadas a seu mundo, como o "Demogorgon", o grande vilão da primeira temporada.

A justificativa para todo esse projeto secreto era contraespionagem. Eleven devia espionar agentes russos, mas acabou encontrando o monstro e abrindo uma fenda espaço-temporal para o mundo invertido. O mundo invertido e o Demogorgon, são apresentados como forças trazidas pela ciência, mas que saíram do controle.  A metáfora salta aos olhos. Nietzsche formulou o problema de maneira poética e genial quando disse que quando se encara o abismo, o abismo encara de volta: em nome da segurança e da defesa da liberdade, o Estado torna-se o próprio mal que diz combater, ou pior. Se o mundo invertido é uma contrafação do nosso, o Demogorgon é uma contrafação do Dr Brenner (responsável pelas pesquisas e que representa a própria ciencia/Estado/poder), ou talvez da própria Eleven: A figura de um ser poderoso cuja humanidade foi perdida em nome de uma instrumentalização.

A agente comunista Eleven esmaga uma lata capitalista da Coca-Cola com o poder da mente.

O mundo invertido também pode ser entendido como uma espécie de mundo pós-apocalipse nuclear, uma realidade alternativa onde a Guerra Fria esquentou - a série se ambienta nos anos 80, onde ainda assombrava o fantasma da Guerra Fria, o temor do holocausto nuclear iminente. Um mundo onde a luz solar não chega, habitado por criaturas mutantes que conseguiram se adaptar. Outra interpretação possível é de que ele é uma espécie de desdobramento 'sobrenatural', ou simbólico do próprio laboratório do governo, lembrando que sobrenatural nada mais é do que o natural que não conhecemos. Enquanto a instância governamental que trabalha diretamente com a população, representada principalmente pelo chefe de polícia Hopper, é quem ajuda, acoberta e muitas vezes salva os protagonistas, o lado secreto do governo está sempre associada ao mundo invertido, o mal e o perigo.

Serviços secretos sempre esconderam muita podridão. Eles estiveram por trás das maiores sujeiras da política internacional do último século, a CIA ainda é notória plantadora de golpes de estado (Bra'Z'il que o diga). Seja no capitalismo ou no "socialismo real", as coisas ficam cinzas quando o que está em jogo é o interesse de um Estado em se tornar mais poderoso que um outro ou simplesmente manter a própria população sob controle. 

O teórico da conspiração da série, após descobrir que não era sabotagem ou espionagem russa a causa dos problemas recentes em Hawkins (cidade onde a história se passa), mas ações do próprio governo americano, é enfaticamente mostrado abrindo uma vodka russa para "pensar melhor", o símbolo maior do nacionalismo paranoico americano cai na real. O Estado perde toda a virtude e toda a legitimidade, passa a agir nas sombras. Os mocinhos passam a ser crianças comuns (ou nem tanto), mães, professores e policiais um pouco rebeldes de cidades insignificantes - e nesse sentido a série subverte o patriotismo autoritário, racionalista, como concebido no século XIX.

Além disso, há outro tema central da trama, que é o fato do controle que temos - ou não - sobre a ciência e a tecnologia, e a serviço de quê elas estão. A sociedade moderna se fundou no entusiasmo com a ciência, que é uma das bases do iluminismo. Os horrores do século XX, a perversão da medicina e da biologia pelo racismo nazista, a perversão da física pela corrida nuclear, e por aí vai, já renderam críticas clássicas, entre as quais as da escola de Frankfurt, que mostraram os limites, os fracassos retumbantes e os perigos do racionalismo científico, principalmente quando a serviço de forças políticas e econômicas escusas.

Habermas formula a questão de modo muito conveniente para minha finalidade aqui. Ele chama o tipo de razão típica do iluminismo, e consequentemente da modernidade, de "razão instrumental", isto é, um tipo de razão que trata não só as forças da natureza, mas as próprias pessoas como instrumentos para a realização da própria razão enquanto categoria quase que metafísica. Na série isso se traduz pelo Estado usando Eleven e seus poderes para suas próprias finalidades que se supõem "racionais". Eleven é um instrumento da racionalidade estatal, independente do que a própria Eleven acha disso e quais são seus próprios interesses. Ela é alguém que tem sua humanidade roubada e passa a servir como ferramenta dessa "razão". 

Habermas propõe a superação desse tipo de racionalidade para uma "razão comunicativa", que se constrói através da socialização das pessoas envolvidas num processo racional. A razão desce do pedestal onde o iluminismo a colocou e é reconhecida como um território em disputa, um território da crítica. Transportando a razão comunicativa para o caso da série, o bem-estar de Eleven seria levado mais em consideração do que qualquer finalidade escusa do governo estadunidense.

Na segunda temporada, o mundo invertido avança pela instalação secreta do governo. Quando o Dr responsável pelo laboratório mostra ao chefe Hopper a situação, ele diz "está se espalhando, crescendo embaixo de nós como um câncer". Os escândalos recentes da WikiLeaks e os vazamentos do Snowden tornam essa questão muito atual. Além disso, nem tudo se resume ao governo, forças econômicas como o Google, Facebook, WhatsApp e por aí vai, que guardam e utilizam para seus próprios fins cada vez mais informações de seus usuários, também despontam como poderosas instituições não-estatais de vigilância. 

Stranger Things é dúbia em relação à teoria crítica frankfurtiana, que eu usei e citei aqui, a série glorifica a indústria cultural através da nostalgia (afinal, é produto da mesma), mas ao mesmo tempo reforça a crítica da razão. Ainda assim, a mensagem é boa: A melhor das intenções a ciência pode trazer o pior dos males. Do mesmo modo, por trás do sorriso filantrópico de um Zukerberg pode haver um demogorgon.

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Edit: A inspiração e as referências ao RPG da série foram deixadas de lado simplesmente porque não cabiam no texto, uma vez que os elementos mais próprios dos RPGs dialogam melhor com a simbologias mitológicas do que com a proposta do texto de discutir Estado e ciência. Apesar disso, estou bem ciente de que o 'mundo invertido' e os monstros da série são originalmente, ou pelo menos numa primeira camada, concebidos a partir do D&D e a série deixa isso bem claro.

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