Hominhos

Geralmente, os adultos pensam que quando as crianças brincam com seus brinquedos, aquilo se trata apenas de alguma coisa tola e sem sentido, coisa de criança. Bom, não é bem assim, digo pela minha experiência e observação que quando uma criança brinca, ela constrói todo um enredo com uma coerência interna e com uma estrutura. Ela constrói um microcosmo.

A gente aprende essas coisas intuitivamente. As estruturas estão todas aí na cultura e nós as incorporamos quase sempre muito naturalmente, às vezes de forma traumática. Aprendemos a andar, falar e a estruturar uma história. Nesse sentido, os "hominhos" (ou "bonequinhos", a nomenclatura varia de pessoa para pessoa) foram meu grande laboratório de literatura na infância.

Eu tinha algumas histórias principais, que eu gostava de repetir de novo e de novo, nunca cansava. A que eu mais me lembro é uma onde a própria casa era um mundo, ou uma ilha exótica e isolada. Os heróis de plástico caíam lá de sua nave (que era algum pedaço de papelão) e passavam a explorar aquele mundo. Os objetos da casa eram os antagonistas, criaturas fantásticas e aterrorizantes (eu não tinha tantos bonecos assim). A mortal tesoura de costura, a ardilosa serpente, que era o fio quebrado de algum eletrodoméstico, o martelo, etc, etc.

Por fim, se descobria que aquele mundo era dominado por um ditador maligno, que queria eliminar os invasores encrenqueiros que estavam atacando as criaturas locais. Eventualmente, os heróis chegavam até o seu castelo e o enfrentavam. Pensando agora, nem sei bem se aquela estrutura política realmente era uma ditadura maligna, ou se os heróis eram heróis de fato, afinal, o que os dava o direito de sair por aí matando a fauna alheia?

Eu tinha também uns bonecos cabeçudos dos jogadores da Copa de 98. Algum brinde colecionável da Coca-Cola, se bem me lembro. Eu pegava uns gols de futebol de botão, uma bolinha de algum outro brinquedo e simulava épicas partidas que sempre acabavam em briga e, consequentemente, matança generalizada - geralmente quando eu me entediava.

Chega um dia, porém, que nada daquilo faz mais sentido. Você pega seus brinquedos e a história não vem mais. Como se alguma coisa morresse subitamente dentro de nós, nada daquilo interessa mais. Sobre o cadáver da criança nascem outras coisas, coisas de adultos. Pelos, sexos, mas as histórias não surgem mais tão facilmente, nem dão mais tanto prazer. Outras coisas passam a nos dar mais tesão que brinquedos e suas labutas imaginárias.

Normalmente não vejo a infância com bons olhos. Certos traumas me fizeram temer e desgostar da inocência/ignorância que a caracteriza, uma vez que esta é a grande fonte dos abusos que sofremos e cometemos. Mas tem alguma coisa ali na libido da criança pelo lúdico e pelo fantástico que é a pura alegria de estar vivo. Alegria esta tão difícil de manter agora adulto e consciente do terror que é a própria existência. Pior, consciente do terror que cercava e atacava aquela ilha onde viviam ditadores e tesouras.

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