Nas culturas primitivas, é através da dinâmica entre mito e rito, e sua repetição no decorrer dos dias, semanas, meses e anos, que retornamos às mesmas práticas e estados mentais que nos conectam com o que as religiões chamam de 'sagrado'. A ideia básica, ensina Mircea Eliade, é que através dos ritos estamos sempre retornando a um mesmo lugar, um momento primordial onde se recria a própria gênese do mundo e da experiência humana explicada no mito. A vida gira em torno de se reconectar com essas ideias que são fundadoras de nós mesmos. O modo como imaginamos ter sido a realidade criada e como ela se constitui, dita onde nos encaixamos na mesma.
Não é bem assim na cultura industrial e globalizada - onde Deus morreu. Mesmo quem ainda cultua o cadáver, depois volta pra casa e vai assistir Naruto, ou a novela, ou desfrutar as benesses da ciência ou padecer dos males do capital. O sagrado está isolado, desconexo, é língua morta.
Mas ainda que excluamos completamente os mitos e ritos em sua forma original, o movimento dos ciclos rituais permanece em outras coisas. As estruturas básicas da psiquê estão contidas nos mitos. Jung chamou isso de "arquétipos", mas foi com Joseph Campbell que eu percebi "o poder do mito" em explicar a mente humana. Realmente não podemos ignorar nossas origens.
Continuamos a voltar , não para os rituais e as igrejas, mas agora para certos produtos que de alguma forma constituem aquilo que identificamos como nós mesmos, aquilo que nos faz sentir integrados com alguma coisa, em casa. Produtos que nos conectam com nossa geração, classe, amizades e com nossa própria história de vida.
Continuamos a voltar , não para os rituais e as igrejas, mas agora para certos produtos que de alguma forma constituem aquilo que identificamos como nós mesmos, aquilo que nos faz sentir integrados com alguma coisa, em casa. Produtos que nos conectam com nossa geração, classe, amizades e com nossa própria história de vida.
Eu posso inventar de escutar música oitentista japonesa, ou brasileira, de jogar algum jogo novo, de escrever uma monografia, mas existem coisas que estão na base da minha personalidade, e eu sempre volto para - entre outros - esse álbum do Judas Priest, Diablo II e para os RPGs de Super Nintendo. A diferença é que isso não me conecta diretamente a nada a não ser a mim mesmo e minhas subjetividades. As instituições que me permitem reviver esses momentos são frias e capitalistas, não as vejo nem as toco. Sou um consumidor personalizado e nada é sagrado.
As coisas que me constituem psicologicamente estão em simbiose com minha experiência material e subjetiva, bem como com as minhas possibilidades de perceber e compreender a realidade. Continua confuso se são as relações econômicas/materiais que fundam as relações ideológicas/psicológicas ou vice-versa. Acho que não é uma coisa nem outra, mas ambas, como em toda dicotomia desse tipo. Cem anos atrás eu provavelmente daria um bom cristão.
A letra de Dreamer Deceiver, que para mim é a melhor música do álbum citado acima, pode ser entendida tanto como uma dessas experiências sagradas (Saw a figure floating / (...) Took us by the hands and up we go), quanto a uma viagem alucinógena qualquer (Through the purple hazy clouds / We thought we were lost / (...) Everyone was in peace of mind), quanto a simples experiência de estar perdido numa realidade completamente indiferente e em busca de algum significado (We are lost above / Floating way up high / If you think you can find a way / You can surely try). O sagrado contido na banalidade e na confusa polissemia do mundo moderno.
Se buscamos reviver esse tempo especial (eterno) quando escutamos uma canção de heavy metal, há algo parecido com religiosidade nisso. "Religiosidade" sem sagrado e sem religião. É o que chamamos de having a good time.
Se buscamos reviver esse tempo especial (eterno) quando escutamos uma canção de heavy metal, há algo parecido com religiosidade nisso. "Religiosidade" sem sagrado e sem religião. É o que chamamos de having a good time.
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