Consumimos séries, filmes, animações e toda sorte de produções midiáticas com cada vez mais frequência e mais fácil acesso. A indústria cultural enfim lança seus tentáculos sobre todos. A internet, instrumento com maior potencial dessa indústria na atualidade, trouxe muitas inovações para o ideário e as relações contemporâneas, uma delas foi talvez a maior das ilusões que rondam o consumo de cultura atualmente: a universalidade. Não a universalidade do consumo em si, uma vez que a diversidade de produção também tende a criar nichos de consumo, mas a ilusão de que a obra é criada para um público universal e que de fato atenda a esse público. Ou, colocando de outra forma, a negligência do consumidor de que o produto não é criado tendo em vista um público universal, mas que ele parte de uma realidade concreta de produção.
Dois fatores básicos apontam para a direção contrária desse mito da "aldeia global", impulsionada pelo consumo globalizado dos mesmos produtos culturais. Primeiro, as condições nacionais de produzir e o mercado interno para quem esses produtos são primeiramente pensados. E, em segundo lugar, a posição que cada país produtor ocupa no jogo do soft power da produção cultural. Uma série americana ou uma animação japonesa tem muito mais chances de ser bem produzida e distribuída e, portanto, chegar no mainstream, do que uma série de algum país periférico do capitalismo.
Ainda que alguns serviços de streaming estejam ajudando a dar visibilidade para produções de fora dos eixos principais do mainstream, em questão de forma esses produtos pouco se diferenciam do que já se vê no mainstream. Ao mesmo tempo que essas plataformas dão alguma visibilidade para esses produtos que antes nem existiriam ou seriam restritos a mercados locais, elas enquadram essas produções nos formatos que são próprios das empresas que as produzem. Ou seja, a produção se diversifica - timidamente - globalmente, porém se unifica em questão de formato e linguagem criativa. Dessa forma, se intensifica a ilusão da universalidade, uma vez que há um alargamento da distribuição mundial, porém, a partir de poucas matrizes.
Outra ilusão que nem de perto se concretizou foi a de que a de que a internet marcaria uma revolução democrática da comunicação, no sentido de uma democratização dos meios de produzir cultura, quebrando assim o monopólio da mídia. Vide a centralização da produção independente "economicamente viável" em poucos gigantes como o Youtube e as crescentes barreiras para novos produtores criadas por esses canais - que visam se tornar mais atrativos para os anunciantes. O mercado já engoliu a internet, como não poderia ser diferente no contexto atual de neoliberalismo. Na medida em que a internet se torna um meio comum e estabelecido de comunicação, e que grandes corporações (google, facebook, netflix, etc) centralizam as "rotas de navegação" nesse meio, a tendência é que os produtos massificantes, "family friendly", e menos "polêmicos", ganhem mais visibilidade, pelo maior potencial de merchandising.
Para além dos benefícios do fácil acesso a uma série espanhola que de outro modo passaria completamente batida, por exemplo, é preciso pensar em quem controla o que ganhará visibilidade. Por mais que o internauta esteja em controle de sua navegação na internet - diferente da TV, onde, por mais que se mude de canal se está inerentemente preso a uma programação rígida e sob estrito controle do dono da emissora -, o conteúdo que recebe destaque não o alcança por acaso. A internet é, sem dúvidas, um grande meio alternativo de consumo de cultura (ou um grande meio de consumo de cultura alternativa), porém, a internet também tende a reproduzir e criar canais, ainda que piratas, de consumo do mainstream da produção cultural mundial. Dois exemplos claros são o tamanho da subcultura digital voltada para a indústria cinematográfica de Hollywood e para o pop japonês - o que definitivamente não é de todo mal, mas nem é esse o ponto.
Observar 'geeks' e 'otakus' brasileiros, é observar também a capacidade de projeção e de apelo que algumas culturas tem ganho sobre outras. Isso denota a capacidade do soft power desses países através da indústria cultural, alcançado a partir da exploração de uma posição favorável no cenário político e econômico. Não por acaso, países com histórico de imperialismo tendem a ser o centro das grandes produções. O fato de um certo tipo cultural ser facilmente exportável não implica em cosmopolitismo, pelo contrário, esses tipos chegam esvaziados politicamente, e seus espaços de consumo também tendem a demonstrar o mesmo tipo de esvaziamento. São espaços do "estar junto à toa", como colocava Maffesoli.
O que temos com essa globalização do consumo cultural é uma contradição entre a obra pensada e a obra como é percebida pelo consumidor casual global, tão distante, literal e figurativamente, de seu local de produção. A primeira prioriza sua sociedade de origem, a segunda percebe a obra a partir do que ela tem de universal. E as produções cada vez mais se fazem passar por universais, uma vez que as perspectivas de expansão de mercados é prioritária para a indústria.
Contudo, é bastante fácil perceber os muitos cacoetes industriais que essas obras apresentam. Há pelo menos três elementos condicionantes fundamentais que acabam com a possibilidade de "universalidade".
O primeiro condicionante é o da linguagem. É o dado mais flagrantemente nacional, e as maiores indústrias culturais tendem a tentar tornar sua linguagem uma linguagem universal. A língua é o elemento de soft power primordial.
O segundo são as instituições representadas. Política, economia, família, escola, trabalho, classe: é tudo local e subordinado à própria estrutura econômica que produz uma obra. Uma série americana questiona muitas coisas e pode ser muito progressista, mas quase nunca questiona a realidade do capitalismo, que é ali um dado tão natural quanto respirar. Não há alternativa.
O terceiro são os afetos e os valores exaltados ou vilanizados, ideologia, em outras palavras. Uma série americana vende não só uma representação de sociedade, vende uma aspiração subjetiva também, que são as aspirações próprias da sociedade que se representa. Um adolescente camponês do interior da Indonésia que assiste uma série da Disney provavelmente absorve aquilo como um modelo a se aspirar tanto quanto um adolescente de classe média do Brasil.
É preciso dizer que o mal não está necessariamente na obra. O problema é o expectador as consumir sem estar atento a esses fatores. Numa sociedade que se abre cada vez mais para os discursos de "diversidade", onde o progressismo parece ter se separado das alternativas revolucionárias, a barreira entre a massificação e o consumo consciente está mais no receptor do que no produto, que não é mais aquela propaganda unidimensional dos primórdios do rádio, da TV e do cinema. Se há uma sofisticação nas representações de valores políticos nos produtos culturais, é preciso que haja também um olhar mais atento do expectador para que esses valores não sejam apenas introjetados ou ignorados. O perigo não vem mais com uma cartola e um bigode para prender uma mocinha nos trilhos do trem.
A cultura nunca está separada da sociedade que a produz, e, dessa forma, ela nunca pode ser consumida e interpretada com ingenuidade política. Além disso, há uma dialética inerente na produção cultural capitalista: esta sempre se apresenta tanto enquanto realização artística e humana de quem a produz, quanto como ofício, tentativa de subsistência e expressão de classe social. Considerando essa dialética, é preciso dizer que esta crítica não tenta desqualificar os tantos bons produtos que surgem. A Luta entre lucro e qualidade parece que ainda seguirá por um bom tempo, e, a menos que a primeira vença, talvez um dia alcancemos a boa universalidade, a universalidade na diversidade. A universalidade vendida no capitalismo tem apenas um nome: massificação do consumo.
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