Antes de tudo, meu canal: Clique aqui.
Agora, ao texto.
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Os historiadores gostam de enfatizar que o ser humano é fruto de seu tempo. Desse modo, a obra artística de um humano pode também ser circunscrita, de certa maneira, como a representação de certos caracteres de seu tempo. Marshall McLuhan dizia que 'o meio é a mensagem', isto é, um meio de comunicação não é somente um modo de veicular algo, mas cria um novo tipo de conteúdo que lhe é próprio. A TV é o conteúdo da TV, e o conteúdo da TV não é o conteúdo do Youtube. Desse modo, minha obra só pode ser entendida como uma manifestação própria do Youtube, da internet e de caracteres simbólicos de minha geração.
Agora, ao texto.
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Os historiadores gostam de enfatizar que o ser humano é fruto de seu tempo. Desse modo, a obra artística de um humano pode também ser circunscrita, de certa maneira, como a representação de certos caracteres de seu tempo. Marshall McLuhan dizia que 'o meio é a mensagem', isto é, um meio de comunicação não é somente um modo de veicular algo, mas cria um novo tipo de conteúdo que lhe é próprio. A TV é o conteúdo da TV, e o conteúdo da TV não é o conteúdo do Youtube. Desse modo, minha obra só pode ser entendida como uma manifestação própria do Youtube, da internet e de caracteres simbólicos de minha geração.
Apesar de minha obra não ser composta por um único tipo de vídeo, toda ela compartilha algumas características e princípios em comum.
1. Dadaísmo
O dadaísmo é um movimento artístico nascido no início do século XX na Europa, e se caracteriza, no que nos diz respeito, por trazer a a arte para o campo do discurso. Isto significa que a arte deixa de significar uma representação pretensamente objetiva da natureza, ou da vida e expressão humana sob um viés estético pré-determinado ou homogêneo. O significado da arte derivado da tradição clássica - isto é, uma representação fidedigna do real - perde a hegemonia, e finalmente nos é permitido perguntar "o que é arte". A arte, mais do que representar algo em sua perfeição, passa a tratar de distorcer a perspectiva de quem olha uma obra, passa de um exercício de representação e significação para um exercício de desconstrução e ressignificação.
Peguemos o exemplo de Duchamp. Suas obras mais famosas consistem simplesmente de retirar objetos comuns de seu espaço normal, colocá-los para exposição num museu ou espaço próprio das 'artes', dar um nome a "obra" e assinar seu nome, ou um outro nome qualquer. Um observador que se deparava com um mictório de cabeça para baixo, com o título "a fonte", tinha algumas perguntas impostas a si: o que caralho era aquilo que ele estava vendo? Por que diabos aquilo estava num museu? Aquilo é arte? O que é arte, afinal? E eu adiciono: o simples ato de levar alguém a esses questionamentos e a distorção do significado de um objeto ou obra em si pode ser considerado arte?
A fórmula de Tristan Tzara de como compor um poema dadaísta talvez deixe claro o que significa essa virada na arte:
"Pegue um jornal
Pegue a tesoura.
Escolha no jornal um artigo do tamanho que você deseja dar a seu poema.
Recorte o artigo.
Recorte em seguida com atenção algumas palavras que formam esse artigo e meta-as num saco.
Agite suavemente.
Tire em seguida cada pedaço um após o outro.
Copie conscienciosamente na ordem em que elas são tiradas do saco.
O poema se parecerá com você.
E ei-lo um escritor infinitamente original e de uma sensibilidade graciosa, ainda que incompreendido do público."
Dito isto podemos concluir algumas características básicas desse tipo de obra. 1 - a ideia de que tudo já foi feito. A arte dadaísta não é original em si, é original no sentido de que ressignifica algo que já existe. 2 - A sua relação com a realidade industrial e com a mídia de massa. Tzara dá o exemplo de recortes de artigos de jornal, no nosso caso, tratamos de recortes de vídeos, músicas, imagens, etc. É um tipo de arte que nasce da experiência comum dos meios com os quais lidamos no cotidiano 3 - O método dadaísta por excelência é a aleatoriedade. É uma arte do caos. É desse caos que sai uma interpretação a posteriori e não uma planejada anteriormente pelo autor, de forma que a própria interpretação da obra é volátil e circunstancial. Assim como no surrealismo, o dadaísmo permite que o inconsciente aflore e controle a produção da obra, que se configura tanto como uma manifestação da psiquê do autor, como do inconsciente coletivo e, ao mesmo tempo, de ninguém.
2 - Paródia e AMVs
No jargão artístico, fazer uma releitura é, basicamente, copiar de próprio punho uma obra que já foi produzida. A paródia é um tipo de releitura que distorce e ressignifica o objeto que representa. One Punch Man é uma paródia dos desenhos de super-herói. Todo Mundo em Pânico parodia filmes de terror. O já quase esquecido funk do 'La Casa de Papel' (Só Quer Vrau) é uma paródia de 'Bella Ciao'. No meu caso, faço paródias de AMVs. Mais propriamente, faço paródias das paródias de AMVs. Mas vamos por partes.
AMV (anime music vídeo) é um tipo de vídeo que recorta cenas de animes e adiciona uma trilha musical que o próprio autor do vídeo escolhe. Desde o início do youtube, um tipo de AMV que se popularizou bastante, até o ponto de virar uma autopiada, é um AMV - provavelmente de Naruto - com uma música do Linkin Park - provavelmente 'Numb', 'In The End' ou 'Crawling'.
A virada genial nesse estilo foi feito por um perfil do Youtube chamado roge. Ao final da Copa do Mundo de 2014, seguindo a traumática lesão na coluna do Neymar durante o jogo contra a Colômbia pelas quartas-de-final da competição, 'roge' lançou um vídeo chamado 'Neymar é encontrado morto após tentar chupar o próprio pau'. Claro que o vídeo não mostra Neymar morto com o próprio pau na boca, o clickbait, na verdade, nos leva a uma paródia de AMV.
O vídeo original trazia na descrição uma parte da letra de "Um Dia Frio" de Djavan. A trilha do vídeo era uma versão da música Der Einsame Hirst (Pastor Solitário) tocada em instrumentos tradicionais andinos e interpretada pelo grupo Ecuador Andes. O vídeo era composto imageticamente por trechos do próprio clipe do Ecuador Andes, além de trechos de animes, de momentos bizarros da seleção brasileira e outros recortes de virais aleatórios - conteúdos que estabelecem imediatamente uma conexão identitária, geracional e afetiva quando vista pelo publico certo; quando visto pelo público errado gera pelo menos confusão e talvez alguma graça. O mundo se deparava, nada mais nada menos com a fórmula última do dadaísmo de Youtube.
As referências básicas desse tipo de dadaísmo, são as referências próprias da subcultura digital brasileira de nosso tempo: animes e virais, com títulos também contextuais. A linguagem também não segue regras, como dita o internetês. No caso de roge, temos, por exemplo, um vídeo com título de uma música do Gustavo Lima (hj eu acordei me veio a falta de vc), porém, a música do vídeo é do Creed (With arms right open). Seus vídeos são normalmente representações dadaístas, completamente vulgares e cômicas, como as paródias tendem a ser, de sentimentos depressivos. Apesar da alusão constante da depressão e da criação consciente de climas depressivos (seja pelo título, pela música, ou pela junção de ambos), o sentimento cômico aflora fortemente no vídeo através da quebra de expectativa e do nonsense que segue todo o espetáculo.
Por sua vez, muito do que o Roge faz tem suas raízes nos "YouTube Poops", um tipo de mashup de vídeo muito popular na plataforma. Mas isso é assunto para outro texto, visto que essas buscas intermináveis sobre as origens das origens pouco importam aqui.
Por sua vez, muito do que o Roge faz tem suas raízes nos "YouTube Poops", um tipo de mashup de vídeo muito popular na plataforma. Mas isso é assunto para outro texto, visto que essas buscas intermináveis sobre as origens das origens pouco importam aqui.
3 - Minha obra
Passemos então para a minha experiência enquanto criador de conteúdo naquela plataforma. Tudo começa pelo título do canal. Meu canal no início exibia meu nome próprio, porém logo mudei o nome do perfil para 'Nemo', que não é um peixe, mas o latim para 'ninguém'. É uma negação paradoxal de autoria, por dois motivos: a matéria prima não é minha, e o produto final é mais o processamento quase aleatório de um espírito do tempo, do que algo meu. Entretanto, por motivos de identificação e reconhecimento voltei a apresentar meu nome no canal.
Meus dois primeiros vídeos, especificamente, seguem quase que à risca a fórmula rogeriana. São talvez protótipos bastante inferiores do que ele fez, talvez por terem sido minha primeira experiência com a edição. Eles são 'dj andré marques toca uma música triste e pensa na vida' e 'hj estou um pouco triste'. Apesar disso, um diferencial dos meus vídeos em relação à fórmula do roge são as descrições (quando não os títulos) dos vídeos um pouco mais longas e/ou pedantes, e não simplesmente nonsense - isso se inicia no meu segundo vídeo. Descrições que desenvolviam uma temática e direcionavam, ou pelo menos insinuavam uma interpretação possível do vídeo.
Meus dois vídeos mais exitosos em termos de visualizações, e que nesse sentido superam em muito os demais, são 'gil da esfirra perde a noção da realidade e ataca fantoche durante cover emocionante do queen' e 'jailson mendes viaja através das dimensões após beber suco de laranja'. Em seus títulos, esses vídeos já marcam minha ruptura em relação à fórmula do roge. Diferente dele, aqui o título remete de alguma forma ao conteúdo que será apresentado e é possível compor uma espécie de narrativa que liga o título ao conteúdo do vídeo. Os vídeos rompem assim com a mera conotação da depressão, ou o nonsense por si mesmo e extrapolam a temática para (nesses dois casos) a própria relação problemática com a natureza da realidade.
Esta será a temática dominante na maioria dos meus vídeos pós-Gil da Esfirra. Os recortes alternam entre um vídeo referência (source), geralmente ligado ao título e os recortes adicionais fazem a ligação com a proposta apresentada nos títulos e descrições. O elemento de paródia de AMV permanece, há sempre um trecho famoso de anime, que além de situar o vídeo em seu universo criativo e cultural, brinca com o fato da realidade, ficção, animação e live action se alternarem e se complementarem na tela. A realidade, representada por mim, se constitui tanto do que percebemos quanto o que criamos a partir da percepção/representação, sem deixar de lado a insinuação de tudo aquilo que nossa percepção não consegue alcançar (esse tema é particularmente trabalhado em "Atravessando as portas da percepção").
Outro fator que marca esses vídeos, é que eles mostram que as visualizações são atraídas muito mais pelos nomes nos títulos, Jailson Mendes e Gil da Esfirra, do que pelo conteúdo ou pela fórmula de edição utilizada nos vídeos. São vídeos que refletem a mais profunda natureza do Youtube: o clickbait e a palavra-chave. Por mais que claramente hajam pretensões - aleatórias e propositais - minhas e a interpretação de quem vê, os vídeos se colocam, antes de tudo, como manifestações de nosso tempo.
4 - Camadas
Quando se fala em interpretação de vídeos que tem uma origem e pretensões próprias tão complexas, o que fica evidente é que eles possuem, naturalmente, mais de uma camada de interpretação. A primeira e mais óbvia é a da comédia, do alivio catártico frente a uma situação absurda. E não é como se os vídeos não buscassem esse fim. Na verdade, alguns dos meus vídeos nem sequer passam dessa camada (como os lipsyncs do Gleyfy Brauly, ou Gil da Esfirra atingindo o instinto superior). Na superfície, tudo não passa de uma grande piada com nossas próprias referências culturais, memes e a subcultura da internet.
Na segunda camada existem as já comentadas insinuações à depressão, suicídio e ao problema da relação com a realidade e a sociedade. Até este ponto está tudo lá, qualquer um que lesse os títulos e as descrições dos vídeos e não os tomasse simplesmente como comédia e nonsense conseguiria chegar até aqui. Curiosamente, a partir daqui as visualizações caem, na melhor das hipóteses, para a casa das centenas.
Na terceira camada temos a relação dos vídeos com a tradição artística que os possibilitam, e isso também já foi trabalhado aqui. A partir desse ponto, começamos a entrar no território do inconsciente. Aqui, é através do próprio experimentalismo e da experiência da criação que o vídeo é significado. Embora alguns, como Eterno Retorno e Dadaísmvs, tenham uma relação mais estrita com essa temática, todos os vídeos passam em alguma medida por aqui. Ao mesmo tempo em que recrio e ressignifico o que já estava criado e significado nos sources, o próprio vídeo dialoga metalinguisticamente com seu método, seja no caso da repetição constante das mesmas imagens e referências, ou na clara exposição das influências artísticas e filosóficas por trás do conceito.
Conclusão
Obviamente esses "caracteres gerais" explicados aqui não esgotam o escopo interpretativo de minha obra, e a proposta é justamente que cada um possa se identificar, se divertir, se entristecer, permanecer indiferente ou não assistir meus vídeos à sua própria maneira. Que cada combinação de vídeo, som e descrição possa gerar uma interpretação e sensação diferente em cada espírito diferente. Dessa forma, uma análise caso a caso não somente é trabalhosa e extenuante demais para meu espírito preguiçoso, como também iria contra o que os próprios vídeos representam, de acordo com o que foi dito neste texto. A obra deve morrer, mas com graça. Adeus.
Bônus: Trívias
1 - A descrição de 'Eterno Retorno' é uma mistura entre o aforismo onde Nietzsche apresenta essa ideia com uma famosa fala de Calígula, no filme homônimo de Tinto Brass. Dois narcisistas com complexo de Deus dialogam muito bem, mesmo que estejam falando de coisas completamente diferentes.
2 - O vídeo "Apocalipse" foi o vídeo mais difícil de nomear. Primeiro porque ele, diferente dos outros, não nasceu do título. Nasceu da ideia de juntar "pregando a briba" com uma música cristã no fundo enquanto passavam imagens quasi aleatórias - nesse caso uma paródia desse tipo de vídeo religioso que você recebe de sua mãe no zap. Seu primeiro título era algo como "ronaldinho gaúcho corta o cabelo e aceita jesus" em caps. Foi o primeiro vídeo em que usei o Wondershare Filmora. Antes disso foram todos feitos no Movie Maker.
3 - O vídeo "Atravessando as portas da percepção" tem legendas em inglês nas falas do Guardião Universal, para melhor propagação da obra.
4 - 'jailson mendes viaja através das dimensões após beber suco de laranja' é o primeiro vídeo onde há falas no meio da execução, enquanto a música está tocando. A fala em questão é a conversa de Vegeta com Trunks, quando Vegeta se sacrifica na tentativa de matar Majin Boo. Isso aconteceu como uma evolução bastante natural na minha edição e me faz pensar no quanto a falta de técnica nos limita.
5 - As imagens que aparecem no vídeo Dadaísmvs representam a história da arte, desde a antiguidade até a contemporaneidade. Até "A Fonte" de Duchamp, foram todas retiradas de uma lista genérica da internet sobre a história da arte. A partir daí, a 'arte' se dilui em imagens queridas de meu acervo.
6 - Provavelmente foi no vídeo "Papa francisco se declara ateu após descobrir o sentido da vida" que eu ganhei dois dos meus mais fiéis seguidores: Antonio Raimundo e Cristovan Jesus. Ambos postam comentários religiosos nos meus vídeos tentando me converter e levando tudo extremamente a sério segundo uma interpretação bíblica. Amo-os. Provavelmente são a mesma pessoa.
8 - Antonio Raimundo fez um vídeo resposta em duas partes ao meu "Eterno Retorno". O vídeo dele é basicamente o tipo de vídeo que eu parodio em "Sinais do fim dos tempos", tanto em forma quanto em conteúdo. A parte 1 do vídeo dele tem mais visualizações que o meu vídeo que ele responde.
9 - Tenho dois comentários preferidos no meu canal, e não consigo me decidir qual mais me preenche de realização. Ambos são no vídeo "jailson mendes viaja através das dimensões após beber suco de laranja". Um é: "Meu filho de 10 anos assistiu essa merda....."; o outro é do Cristovan Jesus e começa assim: "O suco de laranja atraves de outras dimensões, é um sonho que torna real no mundo dos espiritos, seu livre arbitrio é respeitado se recusar tomar o suco".
10 - O único vídeo em que apareço de fato é "The sound of silence". Esse é, ao mesmo tempo, um exercício de edição muito carregado, mas é também meu vídeo mais sombrio e aquele mais genuinamente nascido de um momento ruim. A tentativa é realmente colocar esse estilo horror a serviço de uma expressão de meu estado de então: uma aparente felicidade, distorcida e superficial, que, ao menor aprofundamento revela sua fragilidade e desaba em grande sofrimento emocional. A música que eu tocava originalmente no violão era 'Blackbird', dos Beatles.
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