Entre a maldição e a banalização do mal

A história é bem conhecida, era 1961 e Hannah Arendt foi acompanhar o julgamento do oficial nazista Adolf Eichmann, em Israel. Eichmann era um dos responsáveis pelo transporte de judeus para os guetos e campos de concentração. Foi culpado de todas as acusações e foi condenado à morte. Porém, quando confrontado por seus crimes, se eximia da culpa dizendo que não possuía autoridade alguma no partido nazista e que estava apenas cumprindo ordens.

Eichmann e Arendt

Segundo a filósofa, Eichmann era um homem absolutamente comum. Arendt não via nele nenhum traço de ódio nem grandes falhas de caráter. Ao trabalhar no holocausto, aquele homem, em sua cabeça, estava apenas fazendo seu trabalho com o maior zelo possível, assim como faria qualquer outro trabalho. Arendt chama esse estranho e indiferente cumprir de ordens de "banalidade do mal". Segundo ela, o mal não é simplesmente algo inerente a este ou aquele indivíduo, mas é algo construído política e historicamente. Banalizar e instrumentalizar a violência é uma escolha política que acaba por cobrir as pessoas que vivem nessa determinada sociedade. A vítima desse mal banalizado perde, diante de seu algoz, qualquer traço de humanidade, se torna uma praga a ser exterminada. A banalização do mal é a desumanização do diferente. Esse é um fenômeno que tende a se manifestar muito facilmente em situações de guerra, no fascismo e em contextos de extrema violência urbana - vide a polícia brasileira -, onde o "inimigo" perde a humanidade.

Entretanto, se tivermos um pouco mais de sensibilidade, vemos que a banalização do mal é algo que não está somente no nazismo ou na violência urbana. No livro "A Maldição", de Stephen King, somos colocados diante do mesmo fenômeno numa genérica, pacata e conservadora cidade americana. É ali que King consegue mostrar todo o mal e violência sutil que se esconde por trás do "cidadão de bem". Claro que o mal aqui não aparece na forma de um genocídio, mas, a partir de um assassinato, uma porta nos é aberta para as pequenas violências sociais e institucionais que perpassam a vida do "cidadão de bem".

ALERTA DE SPOILERS

No livro, acompanhamos a história de Billy Halleck, um advogado obeso que, certo dia, atropela uma cigana - a esposa de Halleck o chupava enquanto este dirigia, e Halleck, basicamente, preferiu não cortar a onda a desviar o carro ou frear bruscamente. O chefe de polícia que atendeu a ocorrência acoberta as provas do crime e é negligente com os procedimentos, faz tudo parecer um acidente mais banal. O juiz, que é um notório assediador e meio parça de Halleck, inocenta o amigão. O resto da sociedade não faz caso por uma "cigana suja" morrer. E todo mundo se mobiliza pra expulsar os ciganos da cidade o mais rápido possível.

Pois bem, um velho cigano, diante da situação, sai amaldiçoando um por um. Ele toca Halleck, diz "mais magro" (Thinner, em inglês, que é também o título original do livro) e o advogado passa a emagrecer até... Ele toca o juiz e sua pele passa a se transformar numa casca, ou escama, até começar a se parecer com um monstro. O chefe de polícia tem a pele inteiramente tomada por pústulas que tornam seu convívio social impossível.

A partir daí, acompanhamos a tentativa de Halleck de encontrar o cigano, conversar com ele e tentar reverter a maldição. Enquanto a história se desenrola, os podres da sociedade de Fairview vão se tornando cada vez mais familiares e começamos a achar que as maldições são até justas. Porém, à medida que acompanhamos a degeneração dos "cidadãos de bem", a sensação não é exatamente de "bem feito". É mais incômodo que recompensador. A vingança é tão suja, tão feia, causa tanto sofrimento e absolutamente nenhum bem, não muda nada nem melhora nada, que a sensação que se tem é a de que está todo mundo louco.

E nisso o livro é muito diferente de outras obras que tratam dessa "justa vingança". Para pegar um exemplo fácil e tão Hollywoodiano quanto uma obra de Stephen King, Bastardos Inglórios, de Tarantino, é um filme onde o diretor nos leva a exaltar a vingança contra os nazistas. Ali não há nuance, bem e mal são claros como o dia, cada ato de vingança é estetizado e glamourizado, um "bem feito" suspirado no final é tudo o que resta para o expectador, e a catarse liberal contra o fascismo antissemita está feita. 

Mas, no caso d'A Maldição, não lidamos com um assassinato genial da cúpula do partido nazista, é gente comum que, dadas as suas circunstâncias sociais, reproduzem organicamente tudo o que há de pior e perpetuam os abusos que a posição de poder dado a esses indivíduos permite. Mas nenhum deles é um monstro em si. Elas são, de certa forma, o tipo de pessoa que aquela sociedade demanda para tais cargos. São pessoas tão comuns quanto Eichmann, em um contexto diferente.

Dessa forma, a vingança concentrada naquelas personagens deixa um incômodo, porque sabemos que aquilo não dá em nada, são apenas pequenos bodes expiatórios para exercitar nosso sadismo vingativo - e o do velho cigano -, enquanto em cada cidade os pares dos amaldiçoados continuam a reproduzir os mesmos abusos - diferente do que significaria assassinar a cúpula nazista e ganhar a 2ª Guerra antes do esperado.

Tarantino escolhe a saída catártica ao manipular a emoção do expectador, o maniqueísmo cativa a audiência, mas não inspira muita reflexão. Stephen King, nessa obra em questão, tem muito mais sensibilidade pois não trabalha com personagens unidimensionais, mas com pessoas comuns, cada uma com seus motivos para continuar vivendo da maneira que vivem. É deliberada a tentativa de nos deixar incomodados com as maldições ao mesmo tempo em que elas parecem justas: a vingança não é glamourizada, mas mostrada em toda sua ambiguidade. 

No fim, não se trata de justiça, é tudo apenas mais um ato no ciclo de violência social. A maldição dos ciganos sobre Halleck apenas leva à maldição de Halleck sobre os ciganos: que é quando o protagonista passa a atacá-los fisicamente através de seu amigo mafioso, Ginelli, na tentativa de fazer o velho cigano retirar a maldição.

"[...] todos sabem como essas coisas sempre continuam: eles atacam um, nós atacamos um, então eles atacam dois e nós atacamos três... eles disparam contra um aeroporto, então explodimos uma escola... e o sangue corre nos bueiros" (Ginelli).

A verdadeira maldição não é a que faz Billy Halleck ficar esquelético, ou a que destrói a pele dos inerentemente corruptos agentes públicos que a sociedade demanda para assegurar a ordem social: uma ordem social injusta não pode refletir justiça em suas figuras de poder, do contrário desmoronaria. A verdadeira maldição é o próprio mal banalizado, que cria e demanda essas figuras através da desumanização do outro e espreita para corromper a justiça, transformando-a, hora em opressão, hora em impunidade, hora em vingança. A maldição pulsa, não numa torta, como no livro, mas no medo/ódio ao diferente e no ressentimento. A genialidade de Stephen King reside na capacidade de representar a ~tão inofensiva~ sociedade estadunidense como uma história de terror.

P.S.: O final do livro é muito bom!

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