Filosofilme: análise de O Universo no Olhar (I Origins, 2014)



O Universo no Olhar (I Origins, 2014) é um filme que poderia ser mais ou menos caso acabasse no primeiro ato. Nesse caso, a premissa não teria absolutamente nada de original, a execução muito menos, os personagens e os diálogos tampouco. Mas seria assistível. Obviamente não é isso que acontece.

- Spoilers furiosos e indiscriminados -


O filme é ambientado em Nova York e conta a história do jovem cientista Ian Gray (Michael Pitt), fascinado por tirar fotos de olhos. Ian vai a uma festa e se apaixona à primeira vista por Sofi (Astrid Berges-Frisbey), uma garota mascarada dona de monumental par de olhos heterocromáticos. Depois de um diálogo pavoroso e que entrega muito do filme, eles começam a transar, até que ela vai embora tão impulsivamente quanto começa a transa e ele fica obsecado em a encontrar. Pouco depois, após uma série de coincidências absurdas envolvendo o número 11, ele encontra um outdoor com a foto dos olhos da moça, e, a partir daí, num belo trabalho de stalker... não a encontra. 

Nesse momento do filme surge uma esperança, somos levados a pensar que o filme vai trabalhar esse assunto da "alma gêmea", das improbabilidades da vida e etc de alguma maneira original, mas é claro que não é isso que acontece. Ele a encontra, é claro, por acaso no metrô. Ela diz que enviou espiritualmente os sinais e começa a se estabelecer então a infeliz dicotomia arquetípica que norteia o filme: o cientista cético e a moça alternativa espiritualista, cujo romance holista parece ser a metáfora da união desses dois lados. Vence o senso comum que afirma que o melhor lugar entre dois extremos é o meio e conciliamos o inconciliável.

Paralelamente ao início dessa originalíssima história de amor, somos apresentados ao trabalho do jovem cientista: ele quer traçar toda a evolução do olho para desprovar cientificamente o argumento da complexidade do olho, utilizado pelos idiotas do design inteligente. Como se o necessário não fosse o oposto, os idiotas do design inteligente provarem seu ponto. Além disso, estabelece-se um triângulo amoroso bem novela da Globo entre o cientista, sua inteligentíssima assistente Karen (Brit Marling) e Sofi.

O primeiro ato então acaba subitamente com a morte de Sofi. E pelo caminho que leva até aqui já não restam dúvidas que vai dar merda o resto do filme: antes de Sofi morrer, eles se casam de uma hora pra outra, já que eles são muito modernos e românticos impulsivos. No mesmo dia, Karen, a assistente descolada que faz anotações nas janelas, obtém sucesso no experimento ao produzir uma minhoca sensível à luz. Antes de correr para o laboratório para conferir os resultados do experimento (em vez de ir para a lua de mel), Ian coloca o anel no dedo de Sofi, e por algum motivo que eu nem me lembro, ela diz que colocar o anel ali daria azar. O foreshadow místico que se cumpre sela o caráter medíocre do filme em sua maneira de abordar ciência e religião. Após isso, o relacionamento entra numa mini crise, ele se acidenta no laboratório e na volta para casa o casal fica preso no elevador, o que culmina na morte de Sofi quando, ao sair pela brecha do elevador, ela tem as pernas decepadas. A hybris do protagonista em desprovar Deus é punida imediatamente. Ele fica deprimido, o que acaba num beijo na assistente poucos dias depois(?!).

No bem mais breve segundo ato, sete anos depois do primeiro, Ian está lançando um livro sobre essa coisa toda de desprovar o criador através da evolução do olho. A assistente - agora esposa - está grávida e foram criados uma espécie de scanner e um banco de dados de olhos, aparentemente baseados no trabalho dele (é deles mas ele leva todo o crédito, machistinha hein). O bebê do casal nasce, e quando os seus olhos são escaneados o sistema os acusa de pertencer a outra pessoa. Descobrimos através de (risos) testes científicos, que, aparentemente, o bebê pode ser a reencarnação dessa outra pessoa. Por fim, descobre-se que há uma criança na Índia (é claro!) com os mesmos olhos de Sofi, a ex-namorada morta (uau!). Fim do segundo ato.

Terceiro ato e nosso cientista parte para a índia procurar a criança. Perdemos uns 20 minutos numa busca que não acrescenta nada para a história. Além da apresentação de 2 personagens quase irrelevantes. Uma é a ex-professora da menina, que ajuda na busca e é protagonista da famosa citação do Dalai Lama (risos) sobre comer cu de curioso mudar suas crenças após novas evidências. O outro personagem é um pastor cowboy que parece que vai ter um papel importante no filme... mas não faz porra nenhuma - talvez um anúncio de uma continuação que graças a Deus (cuja existência o filme provou) não veio.

Enfim, Ian acha a criança e... tensão... testes científicos para (risos) determinar se ela é ou não a reencarnação de Sofi. Claro que os testes são inconclusivos, em vez disso, descobrimos que ela é a reencarnação quando tem um ataque de pânico ao quase entrar no elevador com o cientista. E o filme acaba... e nos créditos finais vemos num mapa onde estão as reencarnações de grandes figuras da história (...Suspiro).

E é isso, mais um filme sobre amor, almas gêmeas que reencarnam, etc. E eu não teria nada contra isso tudo, pouco me importaria, se... Se apenas o filme não se escorasse em usar a ciência para provar o oposto do que é a ciência. O filme cria um cenário onde se prova o anticientífico através da ciência, algo que, no cenário negacionista onde nos encontramos, não é só um argumento de roteiro pobre: é algo perigoso.

A velha narrativa, o cientista cético arrogante que se vê obrigado a aceitar o misticismo após argumentos de terceira categoria, consegue ser piorada. Aqui, o cientista é obrigado a aceitar o misticismo através das ferramentas da própria ciência. Nesse sentido, isso é pior do que filmes proselitistas evangélicos, do naipe de "Deus não está morto".

Imaginem aquele argumento da fronteira científica, onde cada vez que a ciência avança sobra menos espaço para o misticismo, tipo descobrir que epilepsia não é possessão demoníaca. O filme usa o mesmo argumento no sentido exatamente oposto, aqui o filme provaria cientificamente que a epilepsia é fruto de uma possessão demoníaca. A temática é outra (reencarnação), mas o exemplo foi bom, vai.

E como sempre fica pior, a estética do filme engana porque a história e as personagens não são apresentadas naquele molde conservador dos filmes proselitistas evangélicos. Esteticamente  o filme é... hipster. A vida urbana, o cientista fotógrafo excêntrico com uma franja e um biquinho ridículo, os cientistas humanizados que fazem farra usando os instrumentos do laboratório, a câmera tremida, os nudes desnecessários, etc, etc. O filme parte dessa coisa pós-moderna toda, e é exatamente isso o mais perigoso. O filme é feito por e para gente descoladinha, mas no fundo a mensagem do filme é terrivelmente conservadora, no sentido de atacar a razão nas mesmas bases "lógicas" que esta é atacada pelos fundamentalistas mais tacanhos. No fim das contas, o hipster pós-moderno está mais próximo de Tomás de Aquino, ou da astrologia, do que de Einstein, ou Nietzsche ou Foucault. No momento em que dão a entender que é na concepção que ocorre a tal reencarnação, chega-se até mesmo, intencionalmente ou não, a flertar com os malucos anti-aborto.

Essa onda new age da espiritualização da ciência, da mistificação da física quântica, do espiritualismo orientalista pop e o pós-modernismo vulgar como um todo, são batidos num liquidificador e sai esse filme. E com isso não avançamos em nenhum sentido, pelo contrário, caímos invariavelmente nos clichés que o mundo "pós-moderno" devia superar: o essencialismo, a alma e - pior - a alma gêmea, o proselitismo travestido de conhecimento objetivo, o ateu arrogante versus o crente sábio, a câmera tremida pra nada, o destino, a citação do líder religioso bonzinho (usada de forma invertida, diga-se de passagem). É, enfim, o velho precariamente vestido de novo.

Só mais um exemplo do capitalismo se apropriando do "novo" para reforçar velhas estruturas.

Aqui a ciência é usada como escada para reforçar o mistério obscurantista, sob o argumento absolutamente vulgar do "essa minhoca sem olho não consegue ver a luz, é como nós que não conseguimos ver a verdade superior" - uma reelaboração triste do clássico "você consegue ver o vento?". Esse tipo de filme me faz perder completamente a esperança neste mundo "pós-moderno", e demonstra que a cultura hipster/metropolitana realmente representa um grave perigo à civilização, na medida em que se apresenta como estando na vanguarda mas a destrói de dentro, pois é, em essência, a última forma da ideologia capitalista. 

Como um Carl Sagan, que era novaiorquino e deve ter revirado para caralho no túmulo, faz falta! 

Comentários

  1. Sofia morrer daquele jeito, partida ao meio, n fez o menor sentido!

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  2. Sofia morrer daquele jeito n fez o menor sentido

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    1. Caramba, eu nem lembrava que eu tinha assistido esse filme, muito menos escrito essa resenha rsrs. Acho que foi pra ser gráfico e traumático, pra no fim do filme justificar o pânico da reencarnação dela. Mas realmente, horrível demais.

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