O mundo realmente seria melhor sem religião? Ou, os limites do neoateismo

O século XXI trouxe consigo um certo reavivamento da discussão pública sobre ceticismo, ciência e ateísmo. As figuras mais proeminentes desse "neoateísmo", como foi chamado esse "movimento", não apenas são bem conhecidas como ganharam o místico epíteto de "os quatro cavaleiros do ateísmo" (Dawkins, Hitchens, Harris e Dennet) - o que, convenhamos, foi uma grande bobagem midiática.

the 4 whitemen of atheism

É fundamental essa contextualização do neoateísmo como um movimento à parte, porque eu não imagino esse tipo de questionamento surgir - se o mundo seria ou não melhor sem religião - entre adeptos de outros momentos e movimentos que tem o ateísmo como característica.

Peguemos, por exemplo, o comunismo. O ateísmo é parte simbiótica da coisa toda, mas esse tipo de questionamento não tem nem lugar nesse tipo de pensamento, uma vez que todo o comunismo tem em si o conceito de transformar o mundo num lugar melhor, e nisso o fim do poder social exercido pelas religiões é apenas mais um ponto entre tantos outros contra os quais lutar. Logo, é óbvio que o mundo seria melhor sem religião, uma vez que ela é um obstáculo para o desenvolvimento da sociedade.

Já o neoateísmo surge agarrado a um cientificismo de forma um tanto apolítica e nutrindo mesmo um desprezo pelo campo político. A religião aparece como algo isolado, como se apenas removendo-a do tecido social, sem mexer em mais nada, fosse o bastante. Não por acaso algumas figuras mais proeminentes desse movimento estão muito mais ligados às ciências naturais e exatas do que às humanas. Na genealogia do conhecimento contemporâneo, esse movimento se aproxima mais do entusiasmo cientificista do iluminismo e do positivismo, e sequer parece levar em conta as teorias que criticam esse tipo de posicionamento ou que partem de uma preocupação social mais prática.

Mas não entendam errado: as mentes predominantes no neoateísmo estão absolutamente convictas de que o mundo seria um lugar melhor sem religião. Na verdade, nada soa mais natural na boca de um Christopher Hitchens ou de um Richard Dawkins do que essa afirmação. Já para quem acompanha isso tudo sem o mesmo entusiasmo desses exímios oradores e debatedores, a coisa não parece tão certa assim. 

Entendo que essa postura "humildona" parta até mesmo de um esforço de se distanciar dessas figuras neoateias, muitas vezes identificadas por afirmações consideradas arrogantes, ataques virulentos contra  a religião e figuras religiosas e muitas declarações polêmicas. Os neoateus acabaram se pintando como essas figuras revoltadas e esse ar revolts adolescente, que já é um grande sinal de fraqueza teórica, acabou não sendo muito útil para sua divulgação e estabelecimento como um movimento viável. Mesmo o Pirula, um dos grandes youtubers divulgadores de ciência no Brasil, fez recentemente um vídeo sobre porque ele acha que o mundo não seria um lugar melhor sem religião

Creio que esse tipo de visão, que diminui o ateísmo enquanto ponto de vista pessoal e que, sendo assim, não tem muita relevância para o resto das coisas, não surge à toa agora, mas faz parte de todo esse movimento próprio do que se chama de pós-modernidade. Me refiro propriamente a afirmação de Lyotard de que a pós-modernidade seria marcada principalmente pelo "fim das metanarrativas". O que isso quer dizer? Quer dizer que como não há uma narrativa das narrativas, isto é, uma história que conecta as outras histórias, que explica como as coisas são na totalidade, que dá uma unidade e uma direção para que se possa interpretar o resto do mundo. 

Dessa forma, esse ateísmo não aparece como aparecia no cientificismo do século XIX ou no comunismo, como parte de um projeto maior, um passo a mais rumo a um mundo melhor. O ateísmo aparece aqui como uma característica isolada de tudo o mais, e que, assim, pode ou não ser positiva. O ateísmo aparece como uma característica puramente individual de alguém e que não quer dizer muita coisa.

Em parte, eu vejo isso como um ponto fraco do próprio neoateísmo, que, negando a política, acaba negando seu próprio potencial de fazer alguma diferença no mundo, seu potencial de formular um projeto concreto para a sociedade, mais do que simplesmente atacar difusa e virulentamente a religião apenas em suas fragilidades mas óbvias. Como se simplesmente atacando a religião em suas bases racionais, o resto fosse automaticamente melhorar. 

Com isso, ainda que alguém  concorde com as afirmações desse neoateísmo no seu ataque contra a religião, o misticismo e a metafísica, isso não quer dizer nada no tocante as posições políticas e morais desse sujeito. E sem esse projeto de mundo em comum, não há cola social que transforme esse ateísmo cientificista em um movimento propriamente dito. O neoateísmo carrega consigo um fortíssimo signo de individualismo burguês. Triste consequência de relegar as ciências humanas a um papel, quando muito, de coadjuvante

Eu, do meu lado, não acho nem que se precise ser comunista para enxergar no ateísmo uma força revolucionária. O neoateus mais proeminentes, ainda que não se definam assim, são visivelmente liberais. Ainda assim, pelas suas declarações, não há a menor dúvida neles de que o fim da religião faria do mundo um lugar melhor.

E isso, penso eu, está ligado ao fato de que eles percebem que a religião não se encerra apenas na própria religião. A religião, ou a visão mística ou metafísica da realidade, cria em torno de si um conjunto de estruturas que direcionam a vida prática das sociedades: as noções de família, de propriedade, de hierarquia (moral e social), a própria noção de vida. É o que eu gosto de chamar de "pensamento do tipo religioso". A religião em si pode morrer e o pensamento do tipo religioso pode continuar, porque, apesar de nascer dela, ele vai além dela e regula áreas que não tem uma ligação clara com a religião. Nesse sentido, penso que há uma falta desse vislumbre em quem diz que o fim da religião não faria diferença no mundo.

Quando eu falo do fim da religião, não digo apenas das pessoas passarem a se declarar ateias ou simplesmente pararem de acreditar num deus ou numa existência acima ou abaixo desta. Tem a ver com superar essas estruturas de pensamento religiosas, e isso, para mim inclui também um pensamento político, social, econômico, etc. Mais do que simplesmente se pautar pelo método científico como apregoam os neoateus.

A morte de Deus não é, ou não deve significar simplesmente um fim das metanarrativas. Significa que o que legitima uma metanarrativa não pode ser um ser imaginário, mas nós em nossa própria razão. Na verdade, a morte de Deus nem significou na prática um fim das metanarrativas, seu cadáver continua esmagando a sociedade humana. Porém é um cadáver esquartejado, e as metanarrativas se multiplicaram a ponto de cada um ter a sua.

Eu me aproximo dos neoateus no seu apreço pela razão e pelo método científico como medida de se chegar a uma verdade maior do que se é possível obter por senso comum e misticismos. Porém me distancio deles em sua verve "isentona", e por sua visão idealizada da própria ciência. Concordo com eles que um mundo sem religião seria melhor, mas eu acho que o ateísmo precisa fazer parte de um projeto de mundo, mais do que ser somente uma característica subjetiva ou uma conclusão racional sobre o mundo (claro que é e deve ser isso também). 

Para que o mundo seja melhor sem religião, o ateísmo deve significar mais do que uma descrença em algo, mas a possibilidade de criar novos valores a partir de bases melhores e mais sólidas. Não basta se alfabetizar cientificamente: os neoateus precisam se alfabetizar politicamente.

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