Filosofilme: Análise de Filhos da Esperança (Children of Men, 2006, dir. Alfonso Cuarón)

Em Filhos da Esperança (Children of men, 2006), temos um grande exemplo da ingratidão sem limites da humanidade. O filme se passa na Inglaterra em 2027, onde a sociedade está desmoronando porque a humanidade, além de outras pragas, ficou infértil. Aparentemente, a Grã Bretanha é o único país que restou diante do colapso global, se tornou uma ditadura e enfrenta uma enorme crise de imigração, já que basicamente todo mundo passou a fugir para lá. Crise essa que o país trata com bastante brutalidade, real nazi shit. Do lado de lá das grades dos imigrantes ilegais, os cidadãos britânicos tem assistência legal para se suicidarem, caso queiram. Ainda assim, piadinha do filme, a maconha ainda é proibida.

Pois vejam bem, a humanidade é agraciada com a maior dádiva de todas: a possibilidade de deixar de existir de forma relativamente pacífica, simplesmente pela falta de novos nascimentos. Mas em vez de desfrutar do presente, a sociedade entra em colapso e o lugar que resta vira uma ditadura fascistoide - a famosa saída mesquinha à direita para lidar com os problemas. E como se não fosse o bastante, acontece que uma dessas imigrantes ilegais fica grávida, e o filme, a partir dessa descoberta, é basicamente o esforço do protagonista de defender essa mãe, entre o governo e grupos rebeldes, para que ela tenha o bebê em paz e seja a esperança da humanidade, yay!

O filme é bom e tudo, digo, é tranquilo de se assistir e tem algumas cenas muito bonitas, incluindo um plano que é um dos mais bonitos (se não o mais) que eu já vi e do qual falarei mais adiante. Mas é claro que a premissa me incomoda profundamente com essa defesa axiomática da vida, algo que eu sou absolutamente contrário, uma vez que eu imagino que seja muito melhor que não haja vida. Podia todo mundo viver e morrer tranquilamente enquanto a humanidade acaba, mas o heroísmo do filme é salvar a vida e dar continuidade a esse ciclo de horror, como se a mocinha grávida fosse a versão moderna do arquétipo da mãe do salvador - no caso, da salvadora. 

Isso tudo fora essa questão de colocar a mulher novamente no papel de parideira, como se fosse a coisa mais maravilhosa que pudesse acontecer. Como a humanidade está acabando, o valor dela está no fato dela ter conseguido engravidar e assim ter o potencial de dar continuidade à humanidade sabe-se lá para quê.

Há também uma certa hostilidade indiferente com a política, com tanto o governo fascistoide, quanto os rebeldes, estarem cegos em sua disputa enquanto a "dádiva milagrosa da vida" definha e morre no meio de sua guerra. ALERTA DE SPOILERS DAQUI PARA A FRENTE Dos três grandes heróis do filme, dois são indivíduos independentes e até indiferentes a isso tudo, e a última é uma rebelde que tem um fim trágico ao ser traída pelos seus.

Daí temos a culminação do filme, o embate entre os rebeldes e o exército num dos guetos onde o protagonista, a mãe e a criança recém-nascida estavam, já em fases finais de sua jornada para escapar para um lugar utópico chamado "projeto humano". Num plano sequência que foi uma das melhores coisas que já vi na tela, algo realmente primoroso tecnicamente e esteticamente, o protagonista atravessa a batalha em busca da mãe e da criança, e quando a encontra, eles saem e a batalha para frente ao milagre da vida. Assim que passam, volta a matança.

No fim, os três fogem do gueto e esperam pelo barco do projeto humano. Descobre-se que o protagonista tomou um tiro durante a batalha e enquanto ele morre, a mãe o diz que sua filha recém-nascida terá o nome do filho falecido dele (algo que é meio cantado no decorrer do filme). Ao que o barco chamado "amanhã" passa pela câmera de um jeito meio épico - e muito cafona - para pegá-los e o filme termina.

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