Filosofilme: Análise de Um Homem que Dorme (Un Homme Qui Dort, 1974, dir. Bernard Queysanne; Georges Perec)


Baseado no romance do Georges Perec, que co-dirige o filme, Um homem que dorme, cujo título diz muito sobre o seu conteúdo, acompanha a história de um estudante universitário de 25 anos em Paris. A "história" se é que podemos chamar assim essa narrativa inconvencional, começa quando o protagonista passa a se isolar em seu quarto, deixa de ir à faculdade e deixa de atender seus amigos. A partir daí ele se torna cada vez mais apático, deprimido, alienado, isolado e essa coisa toda. Seu quarto é seu refúgio, ao mesmo tempo em que também é um lugar estranho e hostil, não muito diferente do mundo exterior.

O filme não tem diálogos, apenas a narração de um fluxo de pensamentos do protagonista, que explicam suas ações, nos informam de sua condição apática e suas impressões por onde ele vai. É como um enorme poema em segunda pessoa, ilustrado belamente pelas imagens que percorrem a tela. É, portanto, também como uma conversa, o "você" inicia quase toda frase, o que te induz a se colocar no lugar do protagonista. A primeira oração do filme, por exemplo, é a seguinte: "seu despertador toca, você fica na sua cama, fecha os olhos de novo". Esse é o estilo narrativo que segue pela hora seguinte de filme.

A trilha sonora é um misto de sons suaves porém pesados, que ditam o clima claustrofóbico da obra, acrescidos de meros barulhos, como o relógio, tão recorrente, que dão essa sensação de desordem, tão comum na arte modernista. O filme se repete muito, à medida que as ações e sensações do protagonista também se repetem, dentro desse clima de rotina apática.

A narração fica cada vez mais intensa, até chegar próxima do grito no momento em que o protagonista volta para casa e encontra seu quarto subitamente em escombros. Seu último e único refúgio destruído, e ele irrompe no desejo de que tudo que existe se destrua e se acabe. Apenas para voltar a mesma suavidade apática no fim.

Se eu tivesse que defini-lo brevemente, seria como uma espécie de poema épico contemporâneo. Pois ele traduz muito bem esse espírito de desamparo, abandono, falta de sentido, solidão, frustração, apatia, e tudo isso que é tão característico da contemporaneidade. É um grande épico pós-moderno. Completamente subjetivo, na perspectiva do protagonista, que por sua vez é completamente alheio a tudo e incapaz de controlar qualquer coisa. A história não sai de lugar nenhum nem vai a lugar algum. Nada se ganha e nada se perde. Nada se aprende e nada se ensina. O protagonista não podia ser uma figura  mais emblemática: estudante universitário de classe média que vive precariamente, mas não necessariamente proletarizado. Não há nenhum perigo sobre ele, nada de mal lhe aconteceu nem irá acontecer. Ainda assim ele é o sintoma de algo maior. Talvez justamente por esse recorte de classe ele seja o melhor veículo para tudo que o filme expressa.

Para mim, falando sério mesmo, ainda não vi nada que traduza melhor o espírito de nossos tempos, e olha que o filme ainda é anterior a toda revolução digital, etc. É realmente o grande épico pós-moderno.

Eu o assisti quase dormindo. Pescando, cochilando por segundos, sendo acordado pela belíssima narração, me perdendo em meus próprios pensamentos e voltando a prestar atenção. Creio que esse é o melhor modo de assistir esse tipo de obra. Afinal, é esse o espírito da coisa. Não tem como não se identificar.

Comentários