Filosofilme: Análise de O Fabuloso Destino de Amélie Poulain (Le fabuleux destin d'Amélie Poulain, 2001, dir. Jean-Pierre Jeunet)

O Fabuloso Destino de Amélie Poulain é um filme baseado no livro de mesmo nome do diretor Jean-Pierre Jeunet, e creio que dispensa maiores apresentações por ser um marco cultural pop e objeto de adoração hipster. Não acredito que alguém que chegue até esses recantos obscuros da internet ainda não o tenha visto.

Mas, falando sério, não é para menos. O filme possui uma narrativa e uma narração cativante (que me lembrou muito o estilo do Jorge Furtado, de Ilha das Flores, O homem que copiava, etc. Não sei onde o Jorge se inspirou pra achar esse estilo, então isso não vai virar uma corrente que vai até a origem desse tipo de narração) e tem um jeito muito especial de tornar cada personagem único e humano, sempre apresentando seus pequenos prazeres e desgostos, suas estranhezas como elementos definidores de seu caráter. 

O filme consegue ter assim muitos coadjuvantes marcantes: os personagens do restaurante, como o casal formado pelo stalker do gravador e a moça hipocondríaca, o escritor fracassado e a proprietária manca, os personagens da vizinhança da Amélie, como Lucién, o vizinho com ossos de vidro, os pais de Amélie, e por aí vai. 

Essa sua aura caricatural, quase fantástica, reforçada pelas fortes paletas vermelhas e verdes unidas num acorde cromático feliz (que dão todo um ar retrô), a câmera se move suavemente pelas cenas e a trilha sonora tão suave quanto a câmera, faz com que tudo beire a um realismo mágico.

O vermelho e o verde no cartaz do filme e a estética fantástica e alegre que as cores evocam.

Dessa forma, a estética é tão estranhamente acolhedora quanto a narrativa. As pequenas cenas, Amélie jogando pedras no rio, o vizinho com ossos de vidro pintando, Amélie ajudando o cego na rua, o metrô, a cidade, o restaurante onde ela trabalha, todos os lugares e todas as cenas são dotadas dessa beleza fantástica. Paris, pela lente de Jeunet, incorpora toda a mística que faz a cidade famosa, distante da feia realidade de metrópole caótica. Mas o grande lance disso tudo é que o filme coloca essa estética fantástica e quase infantil à serviço de um humor negro e temas eróticos - lembro de uma vez ter visto o filme na TV aberta e a classificação indicativa era 18+. E talvez seja exatamente isso que torne o filme tão interessante.

O mesmo tipo de choque, de dicotomia acontece na narrativa, que se alterna entre a realidade e a fantasia. Amélie ocasionalmente quebra a quarta parede, como se ela fosse uma espécie de cúmplice do narrador, como se ela soubesse que está só ilustrando aquela história que ele conta. Ela é a única personagem que olha diretamente para a câmera e parece estar consciente de que aquilo é um filme, mas só às vezes, o que torna esses momentos quase fora de lugar.

Amélie conversando diretamente com o espectador.

O filme começa no momento em que Amélie nasce. Segue brevemente, mas de uma forma muito marcante a infância traumática e solitária da menina, que nunca teve muito afeto dos pais e não pôde ir à escola, uma vez que seu pai, que era médico, achava que ela tinha um problema no coração simplesmente porque ela ficava emocionada demais com sua aproximação, que apenas acontecia em exames de rotina. Um time-skip nos leva diretamente à sua vida adulta, após a tentativa de suicídio de seu peixe e a morte de sua mãe, atingida por uma suicida que pulou da Catedral de Notre-Dame, assim que a mãe de Amélie saia da igreja, onde foi rezar por um irmão para a menina. Tudo apresentado no maior bom humor como a resposta de Deus para a oração.

Uma das sequências mais marcantes do filme é a que retrata Amélie enquanto criança com suas brincadeiras solitárias, entre elas, seu jeito peculiar de comer morangos.

Adulta, Amélie vivia sua vida normal e isolada, até encontrar uma caixinha secreta, com os tesouros de um menino que havia vivido há uns 40 anos no apartamento em que ela morava agora. É na busca por devolver esse tesouro ao seu devido dono, o Sr. Berdoteau... Bertodeau... Bretodeau... Enfim, é nessa busca, e enquanto ela ignora a morte de Lady Di (ela passa a viver justamente quando deixa de ter os afetos mobilizados pela máquina de mobilização de afetos públicos), que a história é engatilhada. De repente, Amélie, que sempre fora uma pessoa isolada, descobre o prazer de interagir e ajudar os outros.

Na verdade, essa é a primeira brincadeira coletiva dela. Essa coisa de afetar a vida dos outros com fortes emoções e assistir tudo de longe, é a maneira dela de brincar com as pessoas e compensar tudo o que ela não brincou na infância. Ela afeta a vida das pessoas da maneira mais significativa e positiva que ela consegue pensar, mas não consegue fazer isso diretamente, está sempre tramando tudo de modo que pareça obra do acaso. Ela assume assim uma certa característica mística, e até angelical, dependendo do olhar. Como os espíritos brincalhões, responsáveis pelas grandes coincidências da vida, como sinais do além, recompensas e punições. O narrador quase desaparece a partir desse segundo ato e a própria Amélie se torna a entidade a brincar com a vida das outras personagens.

Bretodeau ao receber sua caixinha misteriosamente numa cabine telefônica atribui aquilo ao seu anjo da guarda, enquanto a responsável pela devolução apenas ouve, sem coragem de encarar o homem.

Mas o que salta aos olhos é a distância entre intenção e gesto, entre resultado e método.  No fim das contas, é só ela sabotando a vida das pessoas para causar os efeitos que ela acha que serão os melhores para os outros. Seja uma recompensa (como ela faz ao devolver o tesouro do Berdoteau), uma "cura" (como ela faz ao juntar o stalker com a hipocondríaca, achando que os dois padecem de falta de rola amor; ou obrigando seu pai viajar após quase o enlouquecer), ou uma punição (como ela faz com o Collignon face de fion).

Amélie sabota, espia, mente, engana, inventa, rouba, persegue e faz justiça com as próprias mãos. Tudo por um bem maior. E também por um bem menor, é assim também que ela consegue um namorado, marcando enfim a superação de seu trauma antissocial. Tudo com um pianinho suave tocando ao fundo, uma fotografia fofa e enquanto o humor levemente negro, contrastando com isso tudo, cativa o público. 

Amélie habita um mundo onde nada de ruim pode acontecer, a tragédia é tão engraçada quanto a comédia e, consequentemente, não existe tensão, mesmo se uma suicida cair na sua cabeça na saída da igreja, te matando; mesmo se seu peixe tentar suicídio por não aguentar mais a casa onde você passou a infância inteira confinada.

Amélie com raiva planejando a vingança contra Collignon é um grande exemplo dessa ausência de tensão. Ela com raiva é fofa, sofrendo é fofa, alegre é fofa, triste é fofa. Todos os temas adultos se diluem na fofura infantil de Amélie.

Todo mundo acaba feliz, querendo ou não, pelas mãos da protagonista, inclusive ela mesma. O casal esquisitinho fica junto no final. Esses contrastes, essas ambiguidades, o fantástico e o real, o verde e o vermelho, a menina que nunca brincou com as outras crianças brincando com a vida dos adultos, a fantasia infantil e o humor negro/erótico, a tragédia e a comédia, toda uma busca épica para no fim encontrar um testador de cabines fotográficas absolutamente comum (o épico e o banal). Verde ou vermelho, it's all the same, no meio é tudo amarelado. Essas dicotomias que se anulam são o núcleo do filme.

Comentários