Cavaleiros do Zodíaco - do Ocidente ao Japão e do Japão ao Ocidente

Há pouco tempo, a Netflix lançou uma releitura do clássico mangá de Masami Kurumada, Saint Seiya (Os Cavaleiros do Zodíaco). A primeira temporada, lançada até então, adapta, em 6 episódios, os 5 primeiros volumes do mangá, referentes ao seus dois primeiros arcos: o da Guerra Galáctica (o torneio entre os cavaleiros de bronze pela armadura de ouro de Sagitário) e o dos Cavaleiros Negros (onde os 4 protagonistas enfrentam o futuro 5º protagonista, Ikki de Fênix (o anti-herói fodão da série, e os Cavaleiros renegados sob o seu comando, que roubaram a armadura de ouro).

Poster da nova série

Ainda que o núcleo da história permaneça inalterado, é claro que muitas diferenças existem entre o mangá do Kurumada e essa web-série da Netflix, co-produzida entre japoneses e estadunidenses. 23 anos separam a publicação da primeira e da segunda. São mídias diferentes, formatos diferentes, autores diferentes, públicos-alvos diferentes e realidades diferentes. Por isso mesmo, muito pode ser dito e polemizado a partir da comparação entre ambas as versões dessa mesma história.

Porém, não pretendo me ater às polêmicas mais comuns que qualquer adaptação de clássicos das culturas nerd/geek/otaku/gamer e afins suscitam. No caso, os preciosismos que surgem em cada mínima alteração da história e do formato (como assim não tem o dels loiro Edu Falaschi cantando na abertura?!!!), adição, remoção ou alteração de personagens e, é claro, a eterna choradeira sempre que tentam dar uma diversificada no elenco para se adequar aos novos tempos - e aqui a bola da vez é o fato do Shun ter seu gênero readequado e ter virado Shaun, Cavaleira de Andrômeda¹.

Shun e Shaun, sua versão feminina da Netflix

Muito mais me interessam as curiosas apropriações e reapropriações culturais que perpassam essas duas versões de Saint Seiya (nome pelo qual me referirei à franquia, ignorando por enquanto as adaptações ocidentais do título).

Do Ocidente ao Japão


Saint Seiya é um típico mangá shonen japonês dos anos 80: porradeiro, roteiro simples, maniqueísta, violento, lições de moral simples, muito protagonismo, poder da amizade, poucas e inexpressivas personagens femininas, o pacote completo. Com o diferencial de ser todo baseado na mitologia grega, também conhecida como base do pensamento, e, para alguns, da civilização Ocidental.

Créditos: Os Cavaleiros Enlouquecidos

Saint Seiya, apesar de ser um produto tipicamente japonês, feito por um japonês e pensado para o público japonês, se fundamenta no próprio fundamento (com o perdão da redundância) da dita "Civilização Ocidental". Seria o equivalente de uma HQ da Marvel ou da DC sobre o Super-Buda, o Super-Susanowo ou o Super-Confúcio...man.

Assim, Saint Seiya é, de certa forma, a mitologia grega apropriada e recontada sob a fórmula narrativa de um shonen porradeiro dos anos 80. A Shonen Jump lucra, as crianças do mundo todo se divertem, todo mundo fica feliz enquanto Adorno revira no túmulo.

Na verdade, Saint Seiya é um grande exemplo do hibridismo cultural que é típico do Japão. Na cultura japonesa, ainda que ela carregue em si um forte componente isolacionista, como sua história nos mostra, ela é também perpassada por muitos momentos de incorporação de culturas estrangeiras. Eles tem até um termo para isso: iitoko-dori, algo como "incorporar o melhor de algo", no caso, o ato de incorporar como seu aquilo que julgam o melhor de uma cultura estrangeira.

Atena Partenos, imagem muito utilizada na série, e a Atena versão animê

Claro que nesse processo de pinçar aquilo que interessa do exterior, parte do que é original daquilo que é incorporado se perde, e esse elemento se transforma ao ser incorporado, na medida em que é inserido em um contexto diferente, com um significado social diferente e, do mesmo modo, relacionado a outros significados sociais muito diferentes daqueles de sua sociedade de origem. Isso tudo é um jeito complicado de dizer que aquilo que o Japão absorve vira outra coisa, uma coisa estranhamente japonesa.

Há até quem diga que o cerne da cultura japonesa seja justamente essa capacidade de absorver aquilo que é externo. A cultura japonesa seria assim uma "cultura sem rosto", ou uma cultura de "centro vazio"². Esse centro vazio suga as características que lhe interessam, as remodelam e as jogam para a margem, deixando novamente o centro vazio, pronto para sugar alguma outra coisa que lhe interesse.

Desse modo, Saint Seiya usa alguns deuses, as constelações, algo da estética grega, mas está tudo muito longe tanto do que era o mito para os gregos antigos, quanto do que é o mito grego para um ocidental qualquer no presente. O que não significa que a série não tenha seus méritos naquilo que ela se propõe a fazer e que possa até mesmo ser um grande incentivo para uma criança se interessar por mitologia. Talvez justamente por esse forte apelo a algumas das bases do nosso subconsciente coletivo ocidental, Saint Seiya seja um dos maiores hits do pop japonês neste lado do mundo.

O deus do mundo dos mortos Hades em Saint Seiya: uma mistura de cavaleiro medieval, cantor de rock gótico e Lúcifer.

Do Japão ao Ocidente


No Ocidente, o mangá teve sucesso primeiramente na França, onde recebeu o título "Les Chevaliers du Zodiaque", a partir do qual as outras adaptações ocidentais apenas traduziram o título francês para suas próprias línguas, se tornando assim "Os Cavaleiros do Zodíaco", "Los Caballeros del Zodíaco", "The Knights of de Zodiac (título da adaptação da Netflix), etc.

A adaptação do título talvez seja o aspecto mais importante dessa reapropriação de Saint Seiya, e me refiro não só ao título da série, mas também ao título que os heróis recebem na série - de "saints" (santos), os heróis são renomeados "cavaleiros". Detalhe que faz com que a mistura japonesa feita entre mitologia grega e mitologia cristã, naquilo que entendem como o imaginário ocidental, seja menos óbvia para um fã ocidental da série (além de evitar polêmicas religiosas).

A mistura não se resume a influências ocidentais: Shaka de Virgem é um cavaleiro que serve Atena e é, ao mesmo tempo, a reencarnação de Buda na terra. Além de ser loiro de olhos azuis (fenótipo nórdico).

Evitar esses desentendimentos, que alguns podem ver como pequenas "gafes" dos japoneses ao tratar do Ocidente em suas obras, tem sido uma das grandes preocupações da indústria cultural japonesa, como um meio de facilitar a propagação dos mangás pelo mundo. E muitos mangás e animês já tiveram sua exibição no ocidente prejudicadas por esse tipo de problema. São notórios os exemplos de One Piece e sua famigerada versão censurada estadunidense, do Mr Satan de Dragon Ball (Hercule nos EUA) e do próprio Saint Seiya que, com sua violência e estética andrógina, só foi ganhar uma versão norte-americana em 2003.

Aquela mitologia que os japoneses sugam do Ocidente, agora volta diferente e tem que ser reabsorvida e aprovada pelos padrões morais cristãos. É uma confusão sem fim.

Para que essa cultura japonesa possa ser consumida sem maiores problemas no exterior, os japoneses fazem algo que um cara chamado Andrew Dorman chama de "conciliação cultural", que é suavizar traços culturais distintivos japoneses para dar um ar de universalidade à obra³. É, em outras palavras, dar uma ocidentalizada na estética, geralmente fazer com que a história se passe num cenário pseudo-ocidental, uma vez que, geralmente, a representação que os japoneses fazem do ocidente é a de uma Europa idealizada, que alguns, como ninguém menos que Hayao Miyazaki (que faz muito isso), chamam de "pseudo-Western" (pseudo-Ocidente).

É particularmente interessante esse fator da idealização da Europa pelo Japão se considerarmos fenômenos como a Síndrome de Paris, um distúrbio psicológico que ocorre em alguns turistas que, quando visitam a capital francesa, sofrem um choque ao perceber o quanto a ideia que tinham daquele lugar é distante da realidade - distúrbio que acomete especialmente os turistas japoneses (claro que isso não se limita apenas a Paris ou aos turistas japoneses).

Com sua mistura de mitologia grega e sci-fi, Saint Seiya é um grande exemplo de conciliação cultural, e seu enorme sucesso internacional é prova disso. Uma incrível capacidade de se apropriar da cultura alheia para vender hominho mundo afora. Não havia criança que pudesse resistir àquelas armaduras, principalmente se fossem encaixáveis - o que faria com que peças sumissem e possivelmente outro boneco fosse comprado.

Não há criança que resista a isso.

No caso da adaptação da Netflix de Saint Seiya, a conciliação cultural é particularmente relevante: não há menção explícita a um lugar nacional na série, apenas sugestões, e a estética urbana é tipicamente estadunidense, do mesmo modo que a língua da nova versão é inglesa - o público-alvo é ocidental e a série parece focar mais em tentar cativar novos públicos do que pregar aos convertidos (que não são poucos).

Saint Seiya no Brasil


Seria até injusto falar de Saint Seiya e sua relação com o Ocidente sem fazer alguns comentários sobre o percurso da série no Brasil. Seguindo a onda de internacionalização dos animes nos anos 90, a primeira transmissão de "Os Cavaleiros do Zodíaco" foi entre 1994 e 1997 pela TV Manchete, sendo retransmitida pela Cartoon Network em 2003 e pela Band nos anos seguintes. Em 2010, Band também foi a primeira a transmitir a Saga de Hades, até então inédita na TV brasileira. A partir de 2016 a Rede Brasil passou a transmitir o anime.

O sucesso do anime abriu espaço para que a Conrad publicasse o mangá no Brasil em 2000 e republicasse em 2004, além de lançar também o spin-off "Episódio G". Em 2007 a JBC publicou outro spin-off, "The Lost Canvas", e em 2012 lançou sua própria versão da série original, além de também publicar "The Next Dimension", a continuação (até hoje inacabada) da saga, e a kanzenban (edição de luxo) da série original em 2016.

A dublagem local e sua trilha sonora também possuem lugar cativo no público brasileiro, tanto que a nova série, além de manter boa parte dos dubladores originais, prefere seguir a versão original do anime em alguns nomes de personagens e outras referências, em vez de seguir a própria versão da Netflix. Pelo menos a versão brasileira seguiu muito mais o caminho de apelar para a nostalgia dos fãs do que a versão estadunidense, onde Saint Seiya nunca fez tanto sucesso como na Europa e na América Latina.

A trilha sempre foi um espetáculo à parte, desde a época da Manchete, com sua abertura feita especialmente para a versão brasileira - após veicular, inicialmente, uma versão da abertura francesa - e depois com a versão de Pegasus Fantasy cantada por ninguém menos que Edu Falaschi, que também cantou o encerramento, Blue Forever (no céu uma constelaçãaao) e o tema do filme Prólogo do Céu. Outra cantora que também tem grandes participações na trilha brasileira da série é Larissa Tassi, praticamente a cantora oficial da saga no Brasil, ela fez as vozes femininas nas músicas da série original - destaque para a belíssima Chikyuugi, da Saga de Hades (ouvir uma cançãaaao é melhor que choraaar). Houve, inclusive, uma turnê, "Cavaleiros In Concert", que reuniu Larissa, Edu, Rodrigo Rossi e a lenda Ricardo Cruz (que passaram a participar das trilhas a partir da série Ômega, outro spin-off).


Cartaz da turnê.

Cavaleiros do Zodíaco é uma das obras que mais contribuíram para a popularização do pop japonês no Brasil. É referência quase certa para quem cresceu nos anos 90 e 2000. A dupla Dragon Ball e Cavaleiros do Zodíaco é o Romário e Bebeto, o Ronaldo e Rivaldo dos animes no Brasil. Muitos de nós fomos Ronaldo quando marcamos um gol no futebol da rua, do mesmo modo que fomos o cavaleiro de nossa preferência em alguma briga de mentirinha.

Algo me diz, porém, que essa nova versão carece de força para marcar como marcou a infância da minha geração. Primeiro e obviamente porque, apesar de tudo, a Netflix não tem a força que a TV aberta tinha no Brasil nos anos 90 e início dos anos 2000. Segundo pela questão do merchandising que não vem junto como veio antes (o acordo que a TV Manchete tinha para exibir o anime, por exemplo, era uma permuta com a fabricante de brinquedos da franquia no Brasil). Terceiro, por uma questão de apelo estético. As poses espalhafatosas, aqueles pequenos rituais para que um cavaleiro enfim lançasse seu golpe, e que repetíamos prazerosamente nas brincadeiras, não recebem tanto enfoque na versão da Netflix.

As animações em 2 dimensões eram também um incentivo ao desenho. Perdi muitas horas tentando fazer releituras dos cavaleiros e suas armaduras, assim como muitos dos meus colegas. Duvido que a atual série, com seu 3D mais ou menos, inspire essas empreitadas nas novas gerações. Até porque, para além de qualquer questão estética, no Brasil, Saint Seiya é muito mais objeto de nostalgia para uns vintões e trintões entrarem em estados de regressão psicanalítica e esquecerem, pelo menos um pouquinho, do horror social, econômico e político que tem destruído cotidianamente nossas esperanças.

Adorno continua revirando no túmulo.

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Notas 


¹ Ignorando as críticas descabidas, vamos à querela minimamente sensata, para não dizer que não falei das flores. Os críticos mais sensatos condenam o fato de que o personagem Shun simbolizava justamente a quebra do padrão de masculinidade da série, que por mais que fosse toda andrógina na estética, trazia as idealizações clássicas da masculinidade, a exceção sendo justamente o Shun, personagem identificado, inclusive, como homossexual pelo fandom - seja afirmativa ou pejorativamente; do outro lado, há a defesa simples e justa de que a série precisava sim de mais personagens femininas de destaque. Eu, do meu lado, sou sintético entre essas duas posições. Acho que se fosse para ter uma personagem feminina entre os protagonistas, faria mais sentido que fosse Hyoga, que diferente do Shiryu não tem par romântico estabelecido (além do cavaleiro de Dragão ser o próprio estereótipo do cara legal) ou mesmo (para o horror da incelzada) o próprio Seiya, fazendo quem sabe até um casal lésbico foda com Atena e mantendo Shun como exceção ao padrão de masculinidade. Acho que isso seria mais frutífero se a intenção fosse acender o debate sobre gênero. Transformar em mulher o personagem mais delicado e afeminado soa fácil e até regressivo, dependendo do ponto de vista. É quase como confirmar a piadinha babaca de que o Shun sempre foi mesmo "mulherzinha".

² Quem se interessar por isso pode pesquisar pela obra do psicólogo japonês Hayao Kawaii (sim, o sobrenome dele é Kawaii...).

³ O nome do livro é Paradoxical Japaneseness, boa sorte achando um PDF.

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