O fetichismo do indivíduo, ou o indivíduo-mercadoria

O indivíduo neoliberal


Na nossa sociedade engolida pelo neoliberalismo já há algumas boas décadas, uma ideologia curiosa e muito conveniente ao status-quo tem se espalhado: a crença de que o Estado é somente um entrave para a realização e para a vida dos indivíduos. Popularizaram-se frases como "imposto é roubo" e "menos Estado". Popularizou-se uma dicotomia entre Estado e mercado (onde tudo que é bom vem do mercado e da "livre iniciativa" e tudo que é ruim vem do Estado). Apareceu até uma esquizofrenia ideológica chamada "anarcocapitalismo", unindo dois termos autoexcludentes.

É curioso porque, se no século XIX, correntes políticas como o socialismo e o anarquismo surgiam exatamente devido a opressão desumana que o capitalismo infligia à classes inteiras, impedindo assim que os indivíduos dessas classes sequer pudessem ter muito de sua individualidade garantida, a última estratégia do capitalismo é justamente fazer crer que o capitalismo se baseia na defesa do indivíduo, inclusive levando essa ideia às últimas consequências.

E se durante o século XX o Estado se desenvolveu (a partir de muita luta, que fique claro) para tornar-se um meio de garantir alguns parcos direitos a essas classes, mais do que simplesmente a garantir a ordem burguesa (defesa da propriedade e garantias jurídicas básicas, para que a economia capitalista pudesse funcionar), o surgimento do neoliberalismo no final do século passado surge exatamente para fazer com que o Estado volte à sua função original, de ser somente a estrutura que garante a dominação da burguesia sobre as outras classes sociais.

A pegadinha da ideologia neoliberal é que ele ataca o Estado não pelos seus defeitos, mas pelas suas poucas virtudes. Cuidado social vira gasto. Investimento estatal em qualquer coisa vira uma "teta" onde as pessoas mamam. Enfim, tudo que não esteja nos interesses da entidade fantasmagórica do "mercado", é um gasto a se cortar.

É claro que isso favorece o aumento do abismo entre ricos e pobres, e a desigualdade no mundo todo tem crescido desde que o neoliberalismo começou a mostrar suas garras nos anos 70.

O assustador é que parece que o indivíduo neoliberal, convencido de que o Estado é um empecilho em sua vida, e que a iniciativa privada é a salvação, não consegue mais enxergar que ele é parte de uma sociedade. É famosa a frase da Margareth Thatcher, musa do neoliberalismo, que dizia que não existia sociedade, apenas indivíduos.

A questão é que as relações materiais estão tão atomizadas, que as pessoas não conseguem ver todas as relações sociais envolvidas nas coisas mais simples. Pagamos por algo e ele magicamente aparece na nossa frente. O indivíduo neoliberal está completamente convencido de que ele não precisa da sociedade, e existem alguns conceitos de Marx que ajudam a compreendem o porquê disso.

Fetichismo


“Uma relação social definida, estabelecida entre os homens, assume a forma fantasmagórica de uma relação entre coisas".

Era assim que Marx introduzia a ideia de "fetichismo da mercadoria". Simplificando o máximo possível, a ideia era de que, como as pessoas perderam o acesso ao processo total de produção de uma mercadoria, isto é, como cada indivíduo apenas faz uma parte do processo, e não tem contato com as outras partes desse processo de produção, acontecem duas coisas curiosas quando esse produto está finalizado:

A primeira coisa é a alienação. Alienação em Marx significa que o trabalhador não se vê no produto que ele mesmo ajudou a produzir, o produto lhe é estranho e alheio. Imaginem a produção de um iPhone. Uma mina retira ferro, outra retira quaisquer outros minerais utilizados, outra empresa transporta esses minérios, outra produz chipss, outras muitas desenvolvem softwares, e assim por diante. Quanto mais complexo o produto, mais complexo é esse processo. E cada pessoa, empresa, país que participa desse processo de produção, tem o mínimo de contato com os demais atores envolvidos nele.

O segundo resultado disso, é que devido a essa ocultação das relações sociais envolvidas nos processos sociais produtivos, o produto final, o iPhone do nosso exemplo, parece ser uma "figura autônoma" a todo esse processo. Ele tem uma vida própria independente de todo esse processo produtivo. Essa característica está intrinsecamente ligada ao valor desse produto. A razão do nosso iPhone ser muito mais caro do que os outros smartphones não é o seu processo produtivo. Ele é muito mais caro porque é um iPhone. Ele é uma coisa autônoma, independente de seu processo produtivo. E, para piorar, esse iPhone não é produzido em relação a uma necessidade social por ele. É produzido na intenção de gerar cada vez mais valor para essa entidade mágica chamada iPhone.

Isso já era o capitalismo desde o século XIX. A novidade neoliberal, é que ao que me parece, essas características já não dizem respeito somente às mercadorias no seu sentido clássico, mas estão passando para a própria ontologia das massas. Nesse estágio, o próprio indivíduo passa a obter características de mercadoria.

O indivíduo enquanto fetiche


Outra pegadinha do capitalismo atual é que, embora nenhum individuo domine o mínimo dos processos produtivos que regem a vida moderna, esses mesmos indivíduos, por não terem contato direto com esses processos produtivos, passam a crer que são completamente independentes de algumas estruturas sociais que são fundamentais para o bom funcionamento desses processos.

Nesse momento, o próprio indivíduo neoliberal é um fetiche, esse que crê que não precisa do Estado ao mesmo tempo em que não quer romper com uma estrutura capitalista. Porque a estrutura capitalista REQUER Estado. Mas como os processos sociais e produtivos ocultam esse simples fato, a autonomia desse indivíduo, que acha que pode simplesmente se relacionar com outros indivíduos sem uma mediação social maior, é um fetiche.

Aqui o indivíduo perde contato com a própria relação social que o constrói. Ele não se vê como parte de uma cultura, uma vez que agora a própria produção cultural é atomizada e e possuidora desses mesmos atributos mágicos. Assistir a um animê, para dar um exemplo, esconde não apenas o processo de produção do animê, esconde seu próprio local de produção, sua finalidade de agradar ou se encaixar tanto na cultura japonesa, quanto as técnicas inseridas para que o animê seja bem aceito globalmente. Os produtos culturais se desterritorializam e se autonimizam como fetiches porque também são mercadorias e estão sujeitos às mesmas leis das outras mercadorias: precisam gerar mais valor.

No campo político, o indivíduo neoliberal tende a ver as posições políticas práticas, reais, como se fossem a mesma coisa. "Direita e esquerda são iguais", uma vez que todos estão dentro do Estado. Nisso esse individuo se roga alguém que está acima das divisões políticas, ele se vê independente disso. "Não sou de direita nem de esquerda, sou pra frente", afirma o indivíduo neoliberal. E é como mostra a história, esse tipo de posicionamento é sempre de direita.

Eis o indivíduo neoliberal, o indivíduo-fetiche: se acha independente de sua cultura, de seu lugar, de sua classe, independente da política, acima de tudo, ele acha que pode negociar de igual para igual com o patrão, acha que o Estado é um mecanismo que deixa o playstation e o carro mais caro. O estágio atual do capitalismo vendeu a ideia-mercadoria de um indivíduo que é absoluto, e o pobre neoliberal, inadvertido dos processos produtivos dessa ideia, a comprou. 

Em alguns casos, o próprio indivíduo é a mercadoria: youtubers, digital influencers, e-girls, etc. A ideia da prostituição ganha novos sentidos, porque não é uma prostituição do corpo, é uma prostituição da própria identidade. Cada vez mais, e no mundo digital por excelência, o indivíduo é a própria mercadoria.

Eles trabalham para as plataformas de vídeo e redes sociais, ao mesmo tempo em que não possuem qualquer vínculo com elas. A quantidade de relações de produção ocultas nesse tipo de relação youtuber-youtube; instagram-instagrammer, é assombrosa. Ao mesmo tempo, cada indivíduo se vê independente delas, se fazendo sozinho no mundo.

A "uberização" do trabalho é o equivalente disso no mundo real, fora, mas nem tanto, do ciberespaço. O indivíduo agora presta um serviço em nome de uma empresa, porém, utilizando as próprias ferramentas.O próprio carro, a própria moto, a própria bicicleta. A empresa agora não tem qualquer obrigação a não ser recolher a mais-valia: o trabalhador é, ao mesmo tempo, a própria mercadoria vendida por esses aplicativos. E o indivíduo, ao invés de se sentir explorado, se sente dono de si. É a armadilha quase perfeita, até a bolha estourar, pelo menos. O fato é que, cada vez mais o indivíduo se vende de formas mais profundas, cada vez mais é trabalhador em tempo integral, até deixar de ser gente e virar ele mesmo mercadoria. Ao mesmo tempo, tudo o leva a se sentir mais fetiche: menos como parte e resultado de relações sociais, e mais como algo que brotou magicamente no mundo, por si mesmo e por livre e espontânea vontade.

Além dos indivíduos-fetiches, o neoliberalismo possui totens. Todo um panteão de deuses e espíritos maiores e menores. Zuckerberg, Elon Musk, Bill Gates, Steve Jobs, o próprio Donald Trump, toda a cultura yuppie dos anos 90, até a atual cultura "coach", empreendedora. Profetas dessa ideia do indivíduo atomizado, independente, que transforma o mundo apesar da sociedade, e não por ser parte dela. O indivíduo altamente subsidiado pelo Estado e que, ao mesmo tempo, vende a ideia do Estado como o mal encarnado. E é claro que a Esquerda, principalmente aquela que tem como meta a superação do Estado burguês, segundo essa ideologia neoliberal, é representada como a faceta ideológica do Estado. Inversão tosca da realidade, que é o que a ideologia dominante sempre fez.

O indivíduo nunca foi menos autônomo, e a tendência é que continue a ser cada vez menos. Ao mesmo tempo, para que o capitalismo continue a conduzir a sua missão, que é gerar cada vez mais acúmulo de capital, é necessário fazer crer o contrário, pois senão, fica óbvio que a sociedade, talvez na figura do Estado, tem um papel importante em regular essas relações. Nesse sentido, o mito, o fetiche do indivíduo capitalista independente do Estado é o coringa do neoliberalismo para que o capitalismo continue funcionando..

Aristóteles dizia, e é a segunda vez que eu cito essa frase neste blog, que o homem que não precisa da sociedade ou é um deus ou é um animal. Talvez a meia dúzia bilionária desses indivíduos neoliberais alcancem o patamar de divindade, pelo menos para os seus crentes pobres. Mas para cada deus, haverá um bilhão de animais. Em comum entre eles, somente a crença de que não precisam uns dos outros.

Comentários