Tolkien era realmente racista?



O que segue é uma tradução autorizada que fiz do texto "Was Tolkien really racist?", publicado originalmente em 6 de Dezembro de 2018 no portal estadunidense The Conversation. É de autoria da Dra. Dimitra Fimi, professora de Fantasia e Literatura Infantil na Faculdade de Artes da Universidade de Glasgow, na Escócia.

A presente tradução tenta manter, na medida do possível, a forma original do texto, incluindo as imagens e os links utilizados originalmente.


Site da autora: dimitrafimi.com

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Na demonização dos orcs, os feios, monstruosos inimigos dos elfos, JRR Tolkien trai a crença de que "algumas raças são piores que outras"? Este é o debate que tem estado no coração de afirmações recentes na imprensa britânica, que acusam o autor de O Senhor dos Anéis de nutrir visões racistas.

O assunto de Tolkien e raça não é novo; compreensivamente, tem sido discutido por estudiosos, incluindo meu próprio estudo. Mais do que isso, já foi explorado extensivamente na mídia. Os últimos lampejos deste debate midiático aconteceram em 2002, motivados pela trilogia de filmes O Senhor dos Anéis, de Peter Jackson.

Por que agora?


O interesse midiático recente foi engatilhado pelo podcast da Wired com o autor de fantasia Andy Duncan, no qual ele discute seu conto de 2002, Senador Bilbo, cujo personagem principal compartilha o mesmo nome  do herói de O Hobbit de Tolkien, Bilbo Baggins. Nele, Duncan imagina o senador real Theodore G. Bilbo - o senador supremacista branco do Mississipi do início do século XX - se opondo à imigração de orcs ao Condado de Tolkien, numa era pós-Senhor dos Anéis.

JRR Tolkien
Esse senador ficcional é contra qualquer estrangeiro que possa "contaminar" a pureza do Condado. Essa história é uma inteligente e bem escrita paródia, na qual orcs são retratados como mal compreendidos e vítimas de discriminação. Porém, no podcast, Dunca fala sobre a "reiterada noção em Tolkien de que algumas raças são piores que outras" e como essa ideia pode levar a resultados perigosos.

Ele está certo? Bem, sim e não.

O mundo de Tolkien


A Terra Média de Tolkien é hierarquica, empregando a "escala naturae" medieval, uma poderosa metáfora visual que classificava todas as formas de vida de acordo com sua proporção de "espírito" e "matéria". Deus e os anjos estão no topo, seres humanos abaixo, animais mais embaixo e assim por diante.

Similarmente, os elfos de Tolkien estão no topo da hierarquia da Terra Média, enquanto os orcs estão no fundo, por causa de suas correspondentes qualidades morais e espirituais (ou falta delas). Na mitologia de Tolkien, os orcs são tradicionalmente "monstruosos"; eles representam versões corrompidas, distorcidas de elfos e homens, criadas por Morgoth (o Senhor das Trevas original do mundo de Tolkien).

Teologicamente, isso funciona. Funcionou enquanto Tolkien escrevia uma mitologia, isto é, o ciclo de mitos e lendas elficas que compõem O Silmarilion (iniciado antes de O Senhor dos Anéis, nunca concluído e publicado após a morte de Tolkien).

Mas na escrita de O Senhor dos Anéis, Tolkien trocou as formas narrativas. Ele agora estava escrevendo um romance, com diferentes exigências de caracterização, diálogos e assim por diante. Os orcs se tornaram personagens mais complexos. Eles adquiriram uma aparência física mais nítida, humor e personalidade. Eles se tornaram pessoas.

Por volta da mesma época, Tolkien começou a repensar a origem dos orcs. Versões "corrompidas" de elfos e homens fazia sentido teologicamente, porque o maligno Morgoth não teria poder para criar novos seres, mas apenas distorcer aqueles que já existiam. Mas, nesse caso, os orcs possuiriam livre arbítrio? Eles poderiam ser redimidos?

Tolkien agonizou sobre isso e a ideia de que essas monstruosas criaturas podiam ter sido antes elfos majestosos. Ele tentou diversas explicações sobre a sua origem, até a possibilidade de que os orcs fossem autômatos de fala ecoica, como papagaios.

Ele nunca terminou O Silmarilion, então não há "solução" definitiva para a questão de sua origem. Ainda assim, os orcs de O Senhor dos Anéis, indubitavelmente possuem características raciais que são problemáticas: nunca temos uma descrição detalhada no texto, mas traços recorrentes incluem olhos oblíquos e pele morena. Esses elementos derivam diretamente da antropologia vitoriana, ligando qualidades mentais às físicas.

A intenção importa?


Tolkien não foi o primeiro a fazer seres de fantasia maus e monstruosos parecem racialmente "outro". Os goblins de George MacDonald em A Princesa e o Goblin são igualmente (e desconfortavelmente) um produto das ansiedades do século XIX sobre raça e degeneração evolutiva. Como o premiado autor negro de fantasia NK Jemisin comentou, "Orcs são fruto da hera venenosa que é o medo humano 'do Outro'." Isso significa que Tolkien era racista? Bom, é mais complicado que isso.

Textos literários não são criados em um vácuo. Eles são parte de uma tradição. Eles respondem a outros textos e suas expectativas. Os trabalhos iniciais de Tolkien são uma tentativa de escrever uma mitologia, então seres monstruosos seriam muito esperados. George MacDonald já havia pegado os goblins do folclore europeu e os transformado em inimigos de seus personagens "bons", e Tolkien pegou emprestado o termo "orc" de seres demoníacos em Beowulf.

Não é inesperado que os monstros de Tolkien (como os de MacDonald) também respondiam a ansiedades, preocupações e mesmo debates "científicos" de seu tempo sobre características raciais, mas adiciona uma camada de complexidade aos orcs. Ainda que Tolkien tenha denunciado teorias "racialistas", se recusado a declarar origem ariana para garantir a publicação da tradução alemã de O Hobbit, e criticado a alemanha nazista, isso não significa que alguns preconceitos legados por sua educação do final do período vitoriano e início do eduardiano não se infiltraram  na visão de mundo que observamos na Terra Média.

Ideologia é algo poderoso e seu papel na literatura é complicado. Há autores que escrevem com uma agenda social ou política. E há autores que não, mas sua visão de mundo, crenças e valores são implícitos nos textos que eles produzem. Eu acredito que os preconceitos raciais de Tolkien são implícitos na Terra Média., mas seus valores - amizade, companheirismo, altruísmo, coragem, entre muitos outros - são explícitos, o que cria um mundo mais complexo, mais interessante.

Em O Senhor dos Anéis, a Terra Média é um lugar onde diferentes "raças" e povos precisam se juntar e cooperar para triunfar sobre um inimigo que é predominantemente moral. A cena onde Sam Gamgee olha para um inimigo morto, imaginando se ele era realmente maligno, ou apenas um semelhante coagido a entrar na guerra, está longe de demonizar o inimigo ou desumanizar o "outro". Tais complexidades são as razões pelas quais algumas obras literárias continuam a ser lidas e possuem diferentes sentidos para novas gerações.

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