A questão nacional e os super-heróis, ou, Pelo amor de Deus, o símbolo nacional do Japão atual é um encanador italiano vestido com as cores dos Estados Unidos!

Fonte: Nick Perks DeviantArt (https://www.deviantart.com/nick-perks/art/Superman-Super-Mario-the-secret-revealled-323173551)

A diferença entre HQs de super-heróis e seus correspondentes japoneses, os mangás shonen porradeiros, ilustram algo que, para mim, é uma das coisas mais importantes para se ficar atento hoje: a fragilidade do internacionalismo abstrato do capitalismo neoliberal. Sendo mais concreto, a centralidade da cultura ocidental (mais propriamente dos Estados Unidos), que se coloca, nada sutilmente, como cultura universal. E quem discordar que lute.

E é exatamente isso que os países fora dessa centralidade ocidental fazem. Não digo nem do capitalismo, porque o Japão está no centro do capitalismo. Ainda assim, enquanto os Estados Unidos se esfregam na cara de todo mundo de formas visualmente e narrativamente nada sutis, os mangás mascaram o Japão sob um internacionalismo. Há alguns exemplos que ajudam a perceber isso:

Os Super-Heróis literalmente vestem a bandeira dos Estados Unidos. Super-Homem, Capitão América, Homem-Aranha, Mulher-Maravilha e por aí vai. E às vezes quando não vestem são piores ainda, como Batman e Homem de Ferro que encarnam esse mito nojento do "bilionário que contribui pra sociedade".

Nem precisa dizer nada.

Os heróis dos mangás geralmente não apresentam nacionalidade, e mesmo quando apresentam, não vestem a bandeira, pelo menos não de forma tão escancarada. Goku, Luffy, Naruto, Gon, Seiya... Não dizem muito nacionalmente, não ilustram o homem japonês. Tem um teor de anulação nacional, muito diferente dos estadunidenses. Pelo amor de Deus, o grande símbolo nacional do Japão atual é um encanador italiano vestido om as cores dos Estados Unidos!

Além disso, pense nos cenários dos quadrinhos de super-heróis: são representação das metrópoles estadunidenses. Geralmente as histórias se passam em metrópoles dos Estados Unidos ou versões ficcionalizadas delas, como Metrópolis e Gotham, que são, ambas, facetas de Nova York. Os Estados Unidos não apenas vende sua bandeira como fetichiza suas metrópoles, numa tacada só.

Os cenários dos mangás são mundos muito mais fantásticos, e mesmo quando se passam no que seria o Japão real, são cenários muito mais genéricos do que versões turbinadas de Tóquio, ou Quioto, ou Osaka. Em Naruto, por exemplo, Konoha chega até mesmo a evocar um símbolo nacional dos Estados Unidos, com sua versão do Monte Rushmore.


Outra diferença marcante é que os super-heróis estadunidenses são fortes desde sempre, ou desde que ganham seus poderes. Não há crescimento, eles simplesmente são os mais fortes. Nos mangás, há uma questão de crescimento através de esforço, se parte de um lugar de desvantagem para, a partir do esforço próprio, adquirir poder. Ao mesmo tempo que isso pode ser um aspecto cultural distintivo japonês, essa diferença denota algo muito importante, porque se pensarmos os heróis dos quadrinhos como produtos nacionais, que é o que estamos fazendo, mais do que personagens, eles são símbolos. Enquanto os estadunidenses são simplesmente poderosos e não precisam provar nada para ninguém, os japoneses precisam conquistar seu espaço através do esforço.

Um se impõe, o outro se anula. Ambos lucram. São quase reflexos de como esses países participam da modernidade. Ainda assim, nesse internacionalismo difuso da cultura pop, eu sinto um cheiro muito forte de junk food. Eu acho que uma cultura globalizada implica americanização, porque reflete as relações econômicas que formaram esse internacionalismo difuso.

Com o culturalismo ficou meio batido falar de "americanização" porque isso era, de alguma forma diminuir as expressões culturais marginais, mas eu não acho não. Simplesmente está tudo americanizado. Eu penso muito no manguebeat, por exemplo, aquela versão modernizada de Pernambuco era algo parecido com o que a cultura japonesa fez depois da ocupação estadunidense. O tradicional é o autóctone, o moderno é o "ocidental". 

A modernização, para quem não é Ocidente (todos, exceto a Europa e as principais ex-colônias britânicas onde a população local foi dizimada e substituída por brancos), significava, em grande medida, misturar os dois. Ainda significa, creio eu. Se parece que não significa, é porque já está tão bem misturado que muita gente nem percebe mais qual é qual. Parece que o resto do mundo, sob o neoliberalismo, está fadado a ser um cidadão estadunidense de segunda classe. Estamos sob seu poder e influência, mas não usufruímos de nada. A ideia de centro e periferia é real, e no capitalismo, muito mais, não nos esqueçamos.

Que percam para a China.

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