É preciso lembrar de esquecer (mas nem tanto)

Tem muita gente que não gosta de Nietzsche, e com razões muito justas. Tem gente que não gosta porque politicamente a filosofia dele é meio estranha, se é que é possível traçar uma visão política coerente ou concreta a partir da filosofia dele. Tem gente que não gosta porque ele é todo delirante, a proposta moral dele ignora muito da realidade social concreta. Tem gente que não gosta pelo narcisismo, elitismo e tudo mais.

O negócio é que mesmo concordando com tudo isso, ele tem umas observações muito boas. Uma delas, e a minha preferida, é uma certa observação que ele faz na famosa Segunda Consideração Extemporânea - que é um interessantíssimo texto sobre a História. É a coisa da felicidade do ser humano estar diretamente ligada a sua capacidade de esquecer.

Como somos "animais históricos", isto é, temos essa capacidade de estabelecer uma relação com o passado e com a memória, corremos o risco de valorizar demais o passado. Essa relação pode ser paralisante. Do mesmo modo, por conta dessa consciência temporal, nos lembramos das desgraças e infelicidades o tempo todo, o que nos perturba de aproveitar alegremente o nosso presente.

Para piorar, como se não bastasse a lembrança do passado, ainda podemos imaginar um futuro. Nossa "lembrança" do futuro (principalmente quando as perspectivas de futuro são tão horríveis quanto são agora) pode nos tornar infelizes no presente, e como torna! É dificil, nos lembramos das coisas. É a desgraça da consciência.

Nietzsche falou sobre isso muito mais contra o hegelianismo de seu tempo, que dava um valor metafísico à história. Mas eu acho muito mais interessante pensar isso com relação ao próprio presente, ainda mais nesse presente distópico no qual vivemos. Mais do que do passado e do futuro, é preciso esquecer do próprio presente para viver.

Se você tiver sempre em mente todas as atrocidades que estão acontecendo todo tempo o tempo todo, você não faz nada, você não dorme. Porque elas estão acontecendo agora, enquanto você lê isso, estarão acontecendo daqui a pouco quando você terminar e continuarão acontecendo quando você colocar a cabeça no travesseiro.

A árdua tarefa de nossos dias é essa: acompanhar tudo e esquecer tudo - porque, não me entendam errado, é preciso estar atento também. Ainda bem que, de algum jeito, a gente esquece das coisas. Muito naturalmente, inclusive. A gente se distrai fácil. Pense em todas as monstruosidades que estão sendo cometidas neste exato instante. E elas estão sendo cometidas. Ainda assim, rolamos o feed e daqui 30 segundos a gente esquece. Ainda bem.

Mas o fantasma da consciência está sempre ali pronto para nos assombrar de novo e de novo. Ainda bem também, porque se a gente só se esquecer de tudo o tempo todo, a gente vira animal de pastagem. É a figura que Nietzsche usa pra diferenciar o ser humano de animais sem consciência histórica: é o gado pastando, feliz. Gado, palavra que cai como uma luva no nosso Brasil atual, que significa tanta coisa ruim.

É preciso esquecer para ser feliz, mas é preciso lembrar, para não ser gado.

Comentários