A mansão assombrada ou a importância de se fingir de morto para viver

É uma memória que vira e mexe me visita. Um pesadelo que atraiu tanto a minha atenção que nunca me esqueci completamente dele, embora, em geral, nos esqueçamos dos sonhos muito facilmente. Uma mansão assombrada, abandonada e decadente, e eu estou nela. Dentro dela, há uma sala, uma espécie de sala proibida que guarda horrores indescritíveis. Entrar nessa sala chega a perverter tanto a dinâmica do sonho que os personagens do sonho chegam a perder sua consistência, sua personalidade, eles próprios se paralisam. Só resta o horror, o medo quase palpável no ar, a sensação de fim de mundo.

Esse arquétipo da mansão decadente, assombrada, longe de ser exclusividade minha e desse meu pesadelo, é uma das imagens de horror mais presentes na cultura atual. Não por acaso tem sido utilizada à exaustão em franquias de jogos, em filmes, na literatura e em tudo quanto tipo de tentativa de reproduzir o sentimento que chamamos "medo". Desde os castelos habitados por vampiros aristocráticos, ou condessas malignas que realizavam sacrifícios humanos e pactos diabólicos, até os burgueses perturbados do romantismo de Edgar Allan Poe e mesmo os zumbis do cinema, um dos elementos que esse arquétipo da mansão assombrada parece articular é a natureza parasitária da riqueza e do poder. Essas criaturas que habitam a mansão tem uma sede incontrolável e, mais que isso, uma necessidade de sugar a vida de quem lá entra. A ideia é bem simples: a riqueza de um pressupõe a pobreza de outro, o domínio de um pressupõe a serventia de outro e assim por diante. A mansão assombrada é a manifestação inconsciente do horror dessa relação.

Além dos aspectos da vida material representados na mansão assombrada, há também uma dimensão simbólica nela. Na mansão, os símbolos relacionados ao belo e ao luxuoso são pervertidos em símbolos de horror. Quadros, estátuas, esculturas, bibliotecas, tudo está presente na mansão e tudo se transforma de sublime em horroroso. As imagens, os nomes, as sensações associadas ao medo, tomam de assalto o que era para ser belo. Se o cristianismo introduz uma personificação do mal na figura de satanás, é ele quem habita a mansão e personifica a própria ideia do medo que permeia o lugar.

Por fim, a mansão pode servir como representação da própria estrutura da nossa psiquê. Uma representação do idi pelo qual nosso ego vageia no sonho. A sala proibida é, nesse sentido, nada mais que uma espécie de porão, um quarto da bagunça. O horror da vida está contido e compartimentado nessa sala oculta, proibida, que é aberta no pesadelo. Quando ela é descoberta e aberta, é como se ela descortinasse uma farsa. A mansão, que já não é o lugar mais agradável do mundo, é completamente corrompida por essa sensação de farsa, como quem descobre um cadáver no armário, uma mentira primordial. Essa mentira é que toda a mansão, para poder existir, precisa esconder esse horror, que é o próprio horror de estar vivo. 

Algumas religiões tentam trabalhar esse horror com a vida a partir de rituais que, no fundo, simulam a morte. A oração, a meditação, o transe. Estados da negação de si, de ausência. Quando eu soube da existência dos tais "tanques de privação sensorial" ou das terapias de "dark room", só pude pensar que partem basicamente do mesmo princípio: um pouco de morte para ajudar a viver. A questão é que a morte não é horror enquanto fato. A privação dos sentidos e a perda de si, não são um horror em si, pelo contrário, são a ausência de tudo, inclusive do horror. "Quando estamos vivos, é a morte que não está presente; ao contrário, quando a morte está presente, nós é que não estamos”, como diz a famosa frase de Epicuro. O horror está no processo da morte, é a consciência que acompanha o processo de perda de si, do seu ego, a dor física e mental do morrer. 

Nesse sentido o budismo é um pouco mais maduro do que o cristianismo. Embora as duas religiões compreendem muito bem a natureza de sofrimento e horror da vida, o cristianismo culpa o pecado, um elemento degenerador da vida que originalmente seria sem sofrimentos; o budismo compreende o sofrimento como parte integrante da vida. O cristianismo se engana com uma mansão sem horrores após a morte, uma pós-vida perfeita; já o nirvana budista consiste em escapar da roda da vida, cortar o ciclo.

De toda forma, são exemplos fáceis desses ensaios que as culturas inventam para a morte: processos de anulação de si, dos próprios desejos, dos próprios instintos da vida. Até uma forma desarticulada de assumir que a única solução para a vida é escapar da vida. Maneiras de fingir que existe algum lugar, ou algum estado da mente, em que a sala proibida não estará, e que acabam por encontrar na simulação da morte esse lugar. Mas ela não apenas está lá, como continuará a nos assombrar. A reprodução da vida consiste na tentativa de conter esse horror, fingir que ele não existe, ou que é algo secundário, tratável, corrigível, disciplinável, isolável. Mas esse espírito que assombra a mansão é a própria vida despida de qualquer coisa, a vida nua, desprotegida dos mecanismos psicológicos que a impedem de se olhar no espelho. O melhor que podemos fazer é deixar a sala lá, trancada, e tentar sonhar com outras coisas mais felizes. Já estamos vivos e lidemos com isso o melhor e com a maior responsabilidade possível, mesmo que seja necessário se fingir de morto um pouquinho, às vezes. Sofrer mais do que a vida já nos impõe é tolice, superada apenas pela tolice de prolongar o sofrimento fazendo nascer novas vidas.

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