Subúrbio americano, ou o Cavalo de Troia da ideologia

Dentro do Cavalo de Troia da ideologia estão os heróis americanos, trajados com as cores da sua bandeira, e nós torcemos por eles nos esquecendo que eles são os gregos e nós os troianos, o outro.


Quando eu era criança, tudo o que eu queria era morar num subúrbio americano. Ter um quarto cheio de pôsteres na parede, uma casa na árvore, um clubinho secreto e a coisa toda. Nada diferente daqueles filmes que passavam à tarde na Record, tão genéricos que a gente nem lembra o nome. Esses filmes que passam para as crianças ficarem quietas quando os pais estão trabalhando ou cuidando das próprias vidas. Esses filmes que garantem um sólido segundo ou terceiro lugar na audiência da tarde.

O ponto todo é este, nossos sonhos vêm de algum lugar, e não é nenhum lugar místico, eles são fabricados. Existe uma indústria de sonhos. Algumas pessoas querem que aspiremos determinadas vidas, porque acham que o mundo vai ser melhor se todos quiserem as mesmas coisas que eles. Bom, se isso acontecer, certamente o mundo será melhor para eles. 

Alguns intelectuais chamam isso de ideologia. É daí que vem os sonhos, as aspirações. Neste caso, meus sonhos eram do tamanho que cabiam numa programação de tarde da Record, para garantir um segundo ou terceiro lugar na audiência. Vinham de filmes baratos que eles compravam barato de Hollywood, que vendiam o sonho americano para todas as idades.

O porquê desses filmes, e não outros, passarem à tarde na Record, é simples. O país mais forte e a classe social mais forte, impõem, se possível de forma sutil e sofisticada, sua ideologia, seus produtos culturais e suas diretrizes econômicas sobre aqueles mais fracos. A gente é tão mais fraco que compra o pior de lá e vendemos aqui como se fosse o sonho mais sublime. Alguns intelectuais chamam isso de imperialismo.

Isso é tão forte, que não importa que eu tenha ido à escola dos 4 aos 17 anos, resolvido inúmeras questões de livros didáticos, feito inúmeros trabalhos em grupo e cantado inúmeras vezes o hino nacional. A programação da tarde da Record, que num bom dia garantiria um sólido segundo lugar na audiência, pode ser mais poderosa que todo esse esforço pedagógico.

Todo o gigantesco aparato educacional nacional, derrotado por meia dúzia de filmes genéricos, tão medíocres que no máximo pegam um segundo lugar da audiência, que num dia bom ganham da septuagésima quarta reprise do Festival da Boa Vizinhança do Chaves no SBT. Filmes que vendem um sonho que não existe mais nem nos EUA. É como um Cavalo de Troia, uma coisa tosca, improvisada, kitsch, penetrando a impenetrável muralha de Ílion. O que prova que seja Micenas, seja Roma, seja Portugal, seja Inglaterra, seja EUA, império sempre será império. Sempre os mesmos métodos, sempre a mesma farsa.

No Cavalo de Troia da ideologia não existe imperialismo, nem racismo a um nível estrutural, nada que não seja resolvido com uma lição de moral, não existem relações entre países. Existem os EUA e as únicas ameaças, são as ameaças ao subúrbio americano. Essas ameaças são o outro, a língua diferente, a cultura diferente, o comunismo, o sonho que não seja o sonho burguês, a família que não seja a família burguesa, o indivíduo que não seja o indivíduo burguês. Dentro do Cavalo de Troia da ideologia estão os heróis americanos, trajados com as cores da sua bandeira, e nós torcemos por eles nos esquecendo que eles são os gregos e nós os troianos, o outro. Não apenas sonhamos sonhos de segunda mão do império, como nem somos avisados que aquilo sequer foi feito pensando na gente.

São poucos aqueles cujos sonhos ultrapassam a programação da tarde da Record. Tem gente que tem acesso a tudo e continua abrindo o portão para o presente de grego. São Páris e Príamos degenerados, que além de tudo acham que são gregos. Eu não tenho ideia do que desperta cada um do pesadelo da ideologia, se é um pouquinho de sensibilidade, ou inteligência a mais, se é um livro certo ou uma aula certa na hora certa, se é a experiência certa na hora certa. Eu não sei o que é, mas sei que é um pequeno milagre quando isso acontece, e daí não tem volta. Não importa o que aconteça, seus sonhos jamais voltarão a caber na programação da tarde da Record, que no máximo garantem um sólido segundo ou terceiro lugar na audiência.

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