Salas de cinema e igrejas neopentecostais

No filme Tapete Vermelho (dir. Luiz Alberto Pereira, 2005), o caipira Quinzinho (Matheus Nachtergaele), junto com sua esposa Zulmira (Gorete Milagres), deixam sua roça à procura de um cinema para apresentar ao seu filho, Neco, os filmes do Mazzaropi. Essa premissa singela dá vazão a uma crítica muito interessante sobre o lugar do cinema na sociedade e na vida das pessoas. O cinema do Mazzaropi é parte fundamental da relação de Quinzinho com seu pai, e ele quer viver essa experiência também com o seu filho, como uma tradição familiar. Apenas com isso somos confrontados com uma indústria do cinema sem memória, que se esquece e não exibe seus clássicos, um cinema puramente comercial. Por outro lado, as salas de cinema estão em decadência e em seu lugar, literalmente no mesmo prédio, na mesma estrutura física, no mesmo espaço geográfico, surgem igrejas neopentecostais, cumprindo metaforicamente parte desse papel de cinema comercial, mas vendendo não as fantasias do cinema, e sim fantasias um pouco mais cruéis, soluções inexistentes para os problemas mais profundos das pessoas mais vulneráveis da sociedade. O filme mais recente do Kleber Mendonça Filho, Retratos Fantasmas (2023), também passa muito por aí, ao recontar a história de vida do autor em relação à sua própria produção cinematográfica e a história do cinema e salas de cinema em Recife. O roteiro é quase sempre o mesmo, salas de cinema, quando não acabadas em ruínas, sendo substituídas por igrejas neopentecostais.

O fechamento de uma sala de cinema e abertura de uma igreja em seu lugar diz muito sobre o estado de coisas de uma sociedade. Não é apenas um negócio sendo substituído por outro, diz respeito ao lugar que cada coisa ocupa naquela sociedade. Nesse caso, entre outras coisas, a entrada do sagrado na lógica de mercado, e a perda de espaços culturais nas cidades e na sociedade. Há uma dimensão simbólica muito rica nessa troca. Especialmente se pensarmos a diferença entre o espetáculo cinematográfico e o espetáculo neopentecostal. Essas igrejas caça-níqueis, que apregoam o que os estudiosos gostam de elaborar como "teologia da prosperidade", porque dificilmente se pode chamar esse tipo de esquema de teologia, basicamente adaptaram o cristianismo ao contexto neoliberal. Você paga o preço de mercado (dízimo) e recebe o seu produto - a crença da solução para os seus problemas materiais, saúde e dinheiro. Deus como um grande agiota, ou empreendedor, como gostam de chamar hoje em dia. Aqui, a dimensão do bem-estar coletivo, da construção da comunidade cristã não faz mais parte sequer da dimensão discursiva dessas igrejas. Elas prometem que se você pagar monetariamente o que é de Deus, Deus há de retribuir monetariamente. E é isso, o sucesso é o sucesso nos termos do mundo, o indivíduo burguês, capitalista, que moralmente merece o lugar que ocupa nessa sociedade. E o pobre? Crucifica, mereceu. Deus honra os ricos. Cristianismo e meritocracia de mãos dadas, quem diria.

Claro que esse tipo de bobagem não cola em qualquer lugar, é preciso ter uma demanda de sofredores, pessoas derrotadas, excluídas de vencer, porque se tem uma coisa que esse sistema cria são pessoas derrotadas e excluídas de vencer, há lugar para pouquíssimos no capitalismo. Surgidas nos EUA, essas igrejas prosperaram muito lá, sempre em cima da falta de uma previdência social decente, e todo o racismo e desigualdade existentes no seio daquela sociedade. É inevitável que as piores malandragens do centro derramem para as margens do mundo. Quando chegam no Brasil, com seu mar de desgraças e desesperados, um paraíso para negócios que carreguem esses discursos e intenções mais reacionárias, elas rapidamente começam a dominar o submundo evangélico, até chegar a esse lugar atual, de parte consolidada e importante da ideologia dominante.

A mesma crise social que faz com que a sala de cinema deixe de ser viável, cria a demanda de lugares como esses, onde empreendedores da fé e seus asseclas podem lucrar com a situação. Lei de mercado, enquanto um chora e a cura verdadeira é negada, sempre aparece um malandro vendendo um elixir. Toda crise é uma oportunidade se você tiver uma visão de negócios afiada. Sai a arte enquanto parte da formação do universo simbólico e afetivo das pessoas, entra o pastor histérico, prometendo Deus e o mundo para aquele que pagar. Do lazer do cinema ao oportunismo pseudo-religioso.

Outra dimensão curiosa dessa situação é sobre o lugar geográfico do sagrado nas cidades. Durante a colonização, era uma prática dos europeus construírem igrejas em cima dos antigos lugares sagrados dos povos derrotados, para facilitar a conversão. O novo sagrado substitui o antigo. O cinema sempre representou, de certo modo, o sonho do futuro, sempre carregou consigo uma certa fascinação mais do que artística, tecnológica, lugar que, uma vez morto, foi tomado pelo retrocesso do tipo mais oportunista da fé. Parte dessa substituição passa, portanto, pelo que alguns pensadores colocam como o "fim do futuro". As salas de cinema perdem espaço como agentes de um futuro promissor, são tomadas por agentes que vendem um futuro muito mais sombrio e enganador que o cinema.

Não que a religião institucionalizada não tenha seu lugar na sociedade, meu ponto nem passa por aí. Pelo contrário, passa justamente que o lugar da cultura, da arte, do entretenimento, vem sendo substituído no Brasil, fisicamente e simbolicamente, por esse tipo de religiosidade exploradora. Busco apenas chamar a atenção para a ocupação não apenas do espaço físico das cidades, mas do tempo das pessoas, das possibilidades de lazer que a cidade proporciona, das possibilidades sociais e artísticas, possibilidades de construção de subjetividade. Porque enquanto o cinema é um portal para todas as potencialidades humanas, a igreja neopentecostal é um matadouro disfarçado de hospital, uma das manifestações mais cruéis da ideologia dominante, mantendo o trabalhador no fosso profundo da mentalidade neoliberal. Enquanto o futuro parece completamente inviável e sem solução, pululam farmácias, estacionamentos e igrejas, sobretudo igrejas neopentecostais. Nada é por acaso.

Comentários

  1. Ary, seu texto me deixou saudoso e pensativa. Tive saudades do cinema que frequentava em Moc, geralmente nas matinês dos domingos, depois de economizar os tostões que ganhava na semana com alguns trabalhos domésticos. Era muito comum meus tios me presentearem com o ingresso e me acompanhar até a entrada. Décadas depois, na mesma lógica neoliberal, o prédio se tornou uma Igreja e, atualmente é Sede de uma faculdade EAD. Enfim, nossos espaços de socialização estão sendo repartidos, ressignificados, e nossa memória subtraída em nome da fé cada vez mais explorada pelos fiéis ao mercado.

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  2. Muito bom o texto! Infelizmente esse é o movimento atual das coisas. Aqui em Salinas os bares tb têm sido substituídos por igrejas pentecostais

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