Cultura do apocalipse

A concepção de tempo linear cristã é inerentemente apocalíptica. O mundo teve um começo claro quando no princípio era o Verbo e Deus disse "haja luz"; e terá um fim claro quando todos os pecadores forem extintos em fogo, amém. Porém, os justos não tem nada a temer, pois esse fim nada mais é que o começo real: a vida eterna no Céu, seja lá o que for o Céu. Existe um fim estacionário da história. Depois de certo ponto, o mal é extirpado e tudo se estabiliza. É completamente diferente das concepções antigas e orientais, baseada no equilíbrio das dualidades da natureza e na repetição eterna dos ciclos. O monoteísmo de base judaica nos legou esse fim da história supremo, absoluto. Nascendo e crescendo nessa cultura, sempre estive não somente imerso em apocalipsismos, como este sempre me foi um tema de primeiro interesse.

O evento que marca o fim do mundo é o retorno do Messias, outra figura basilar do monoteísmo de base judaica. O salvador mundi, o cristo que vem para redimir todos os erros da humanidade retorna, pondo ordem na casa. É o evento mais importante da história, de modo que não podemos fazer outra coisa a não ser vivermos nos preparando para tal ocasião.

Tudo então viram sinais dos tempos. Guerra? Jesus está voltando. Desastres ambientais? Jesus está voltando. Name it, Jesus está voltando.

Desde a cruz até aqui, tem sido assim onde o cristianismo se tornou dominante. Toda data importante, toda virada de século, de década, toda conjunção astral sinistra tem somente uma explicação: o fim dos tempos.

Tendo isso em mente, existe até uma ideia de "aceleracionismo". É preciso acelerar o fim dos tempos. É preciso procurar nas escrituras todos os sinais, e quanto antes pudermos fazer todos eles se tornarem realidade, mais rápido termina isso tudo. Das cinzas do que sobrar nascerá a flor do fim da história. A versão laica do aceleracionismo não cai longe da árvore-mãe do fanatismo judaico-cristão.

No cinema, recentemente, tem sido difícil encontrar algum grande lançamento que não tenha uma alegoria apocalíptica, isso quando o filme inteiro não é sobre isso. Em tempos de "mudanças climáticas", pós-pandemia de Covid e vivendo o total esgotamento do discurso liberal vencedor da Guerra Fria, essas alegorias se multiplicam e ficam cada vez mais cínicas. Cada vez mais o argumento que guia essas ficções de fim de mundo é o de que não há ninguém no controle, não há nada a ser feito. O homem é mal, a natureza é hostil, todos morreremos. Não Olhe Para Cima (2021), Triangulo da Tristeza (2022) e "O Mundo Depois de Nós" (2023), para citar um grande lançamento de cada um dos últimos três anos, são exemplos disso. É o argumento cínico, conivente e conveniente ao capital. "Não há alternativa", o lema de Margaret Thatcher, o grande "ohm", o som do universo do nosso tempo, a frase que ecoou no parto da ordem neoliberal, vencedora da Guerra Fria, foi o grito de vitória mais triste de todos. O capitalismo se impôs, não prometendo resolver as coisas, mas dizendo que as outras alternativas eram piores. Não prometeu vida, prometeu a morte menos dolorosa, e até isso era mentira.

O mundo e a vida como conhecemos certamente vão acabar em algum momento. Talvez no nosso tempo, talvez num futuro próximo, certamente no futuro distante. Não é motivo para jogar os pontos e cair num niilismo infantil. Para além disso, é punheta intelectual tentar definir se a natureza do tempo é linear ou cíclica, ou de qualquer outra forma. Não sabemos se depois do fim as coisas continuam, rebobinam, reiniciam, se rompem, ou simplesmente acabam definitivamente. O que acontece quando o feitiço do tempo se desfaz, é algo que concerne somente aqueles que já escaparam desse feitiço. Particularmente, estou cansado desses nossos delírios de apocalipse.

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