Ter que me provar é algo que me incomoda profundamente. Não importa o motivo, não importa se é ter que provar que estou vivo para colher um benefício do governo, se é provar minha qualificação para o que quer que seja, se é ter que passar na prova, se é ter que convencer alguém de algo. Para lidar com quem quer que seja, é preciso primeiro convencer essa pessoa que você é digno da sua atenção. Aí a interação social já me perde. Se eu tenho que me provar, eu me desinteresso no mesmo momento, pior, fico decepcionado. Podíamos mais.
Um mundo onde precisamos nos provar é um mundo em guerra, e a guerra é a pior condição possível. Não quero fazer um lamento inocente ou hipersensível às demandas do mundo, mas estabelecer um sarrafo. É preciso ter um sarrafo de futuro. Enquanto não chegarmos aqui, estarei em guerra, não porque quero, mas porque a paz não é possível a não ser assim. Isso parte de uma leitura sensível da realidade, de uma observação de causa e efeito.
O pior de se provar, e onde esses efeitos são sentidos com maior tristeza, é no amor. O outro não é confiável até que se prove o contrário. E as coisas tendem a ser interpretadas sempre da pior maneira, porque a desgraça é a norma.
No geral, você precisa se provar mil vezes e de mil maneiras até que alguém te ouça. Pior com seus contemporâneos, e pior ainda com seus conterrâneos, que famosamente nunca reconhecem os seus bons pares, até que eles morram - quando não são eles mesmos que os matam. Mesmo alguns dos maiores artistas que já produzimos, sejam criadores ou performáticos, cujas obras são naturalmente arrebatadoras, foram ignorados, preteridos ou até zombados no seu tempo. Quanto menos se curvam às normas dominantes, mais são bloqueados pelo caminho. O que me incomoda, porém, está em outra direção: é ter que me provar para conseguir, não a grandeza (que não se pode almejar), mas as coisas mais básicas da vida.
Todos nos conhecemos no nosso íntimo, sabemos o que nos faltou e nos falta, e quem pensa honestamente nos seus erros, sabe o que precisaria para que aquilo não acontecesse novamente, não somente consigo, mas como um todo, porque é pelo todo que os problemas chegam no particular. Se não precisássemos nos provar pelo básico, se o sarrafo do mundo não fosse “sou útil ao capitalista”, imagina a alegria, imagina quantas provas deixariam de existir. Os recursos dos povos nas mãos dos povos. Não existe solução para este mundo que não passe por aí.
Mais recentemente, essa coisa de se provar ficou ainda um pouco mais complicada, porque os mecanismos de validação social se pulverizaram com as redes sociais, ao mesmo tempo em que a estrutura de exploração capitalista se fortaleceu com o neoliberalismo. As grandes empresas têm um poder difícil de imaginar no passado, devido às mudanças causadas pelas novas tecnologias do chamado cyberespaço. Existem verdadeiros senhores feudais do cyberespaço, e quanto mais este invade o mundo concreto, e inevitavelmente o invadirá até onde for possível, mais essas empresas e indivíduos ganham poder. Regulam o que veremos, quando veremos e com que frequência. Geramos gigabytes de dados para eles gratuitamente e ainda pagamos aluguel.
Além disso, com as redes sociais, hoje completamente onipresentes e inevitáveis, o que chega ao grande público está duplamente rebaixado. Primeiro pelas regras dos algoritmos e limitações de formato que são decididas arbitrariamente por essas companhias, atendendo em última instância aos interesses momentâneos da burguesia. Segundo porque, dentro dessas condições, o sarrafo do grande público é muito baixo, a curadoria não é boa. É importante que haja essa curadoria ampla do grande público sobre quem deve ou não receber atenção e recursos, mas é preciso que as possibilidades de turbinar ou paralisar alguém sejam dadas por critérios melhores, ou, pelo menos, mais claros e democráticos. O sarrafo de "quem vai gerar mais publicidade" é a antessala do inferno. Não há pessoa que sobreviva muito tempo na selva de uma página inicial padronizada de rede social, e isso prova como as redes dão sequência na tradição do rádio e da tv de transformar o "gosto médio" num absoluto pesadelo, ou pelo menos as redes sociais o instrumentalizam como pesadelo. Não importa para que direção o conteúdo leve o mundo, desde que não interfira com os nossos interesses, é o que pensam.
Caminhamos para um mundo onde precisaremos nos provar cada vez mais, para cada vez mais pessoas. Após milhares de anos longe das savanas, onde evoluímos para estarmos sempre atentos ao perigo, pois estávamos perenemente sob o risco de um ataque predatório, damos sinais de voltar para essa situação de stress perpétuo. Essa é a punchline, após desenvolvermos todos os meios para escaparmos desses perigos, em vez de criar uma sociedade onde poderíamos finalmente relaxar, estamos voltando para uma situação de stress perpétuo. Nem os burgueses que mais puxam o mundo para essa realidade escaparão dos seus efeitos. Transformados em neolordes feudais do cyberespaço, eles também estarão o tempo todo no mesmo espaço, pois para manter sua posição social não podem se furtar completamente do mundo, não podem simplesmente criar seus próprios Jardins do Éden, sob risco de uma cyberevolução francesa e suas guilhotinas, ainda que virtuais. Esse tipo de mundo exige um reforço perpétuo do próprio poder - também precisarão se provar o tempo inteiro, seu poder é ilegítimo a esse ponto.
O atual estágio do capitalismo cria um grande drama palaciano de um império decadente. Em meio ao caos, todos sentem que podem se tornar os novos imperadores, e o farão, mesmo sabendo que serão assassinados pelo próximo oportunista dali a meses. Estamos muito mais para o ano dos cinco imperadores do que para a pax augusta da humanidade.
Logo, me parece, não bastará se provar para conseguir o básico, será necessário fazer os outros se provarem por você, cada neosenhor feudal dependendo de milhões de "seguidores", neoservos. Claro que a maioria já faz isso, mas para nós que ainda resistimos, ficará impossível. Após a onda universalista moderna, parece que estamos retrocedendo a um cyberfeudalismo, com novos sistemas de castas, privilégios e servidões, sua própria dialética de senhor e escravo, um perpetuamente colocando o outro à prova.
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