O velório da democracia liberal


A democracia liberal tem sido a ideologia dominante no mundo branco europeu pelos últimos duzentos anos. E a razão desse sucesso é simples de entender: funcionou para o mundo branco europeu. Uma vez estabelecido como o sujeito universal, o branco-europeu-proprietário pintou um quadro ideal de cidadão, de direitos, de vida, de possibilidades para serem conferidos a esse sujeito. Era um mundo que ignorava solenemente o que o sustentava: o racismo, a escravidão/exploração do trabalho, a violência de gênero e o imperialismo. Sempre que um desses pilares se abalou, a democracia liberal ruiu rapidamente frente a discursos mais claramente autoritários.

Agora, as contradições se acumularam a um ponto de ruptura no centro do sistema. É uma crise sistêmica do tamanho da que gerou o fascismo há cem anos. Dessa vez, a situação é um pouco mais complexa para a centralidade do sistema, já que o socialismo chinês está entranhado no mundo capitalista de uma forma que o socialismo soviético jamais sonhou em conseguir. Ou seja, não é um adversário que pode ser isolado e boicotado da forma como a URSS foi. E se, por um lado, a decadência liberal pode abrir caminho para a resolução de suas contradições, ela pode levar ao fim da humanidade, já que precisamos levar em consideração a questão nuclear e climática. Novamente, em relação à crise de cem anos atrás, as possibilidades destrutivas nem se comparam.

As formas da guerra de propaganda também mudaram muito. A internet e o smartphone dificultam o escalamento de situações como a do holocausto e da organização de milícias como as nazifascistas na centralidade do capitalismo. Embora muitas populações ainda sejam massacradas pelos fascistas contemporâneos, vide a situação palestina, ou a crise carcerária de países como os EUA e o próprio Brasil, o escrutínio público é muito maior e mais difícil de controlar via fake news - muito embora elas ainda causem um estrago avassalador no debate público. É mais difícil mover a opinião pública de forma tão centralizada e sem capacidade de resistência.

Há cem anos, a Europa branca rachou diante do descontrole histriônico fascista. Vencido pelos soviéticos, e provado incontrolável para as próprias potências estabelecidas, o mundo capitalista apostou na democracia liberal, dessa vez, não mais como a promessa utópica do iluminismo, mas como o caminho menos pior, como o caminho possível, frente a duas propostas "autoritárias", cunharam até um termo novo na quimera do "totalitarismo", na tentativa desesperada de igualar fascismo e comunismo, colocando a democracia liberal como o único caminho.

À medida em que o "sujeito universal", o homem branco, foi perdendo a primazia ontológica, a democracia liberal foi se mostrando cada vez menos democrática e menos liberal - ou melhor, nem a máscara da ideologia tem conseguido esconder que ela nunca foi democrática nem liberal, e é justamente nesses pontos de ruptura ideológica, que o fascismo sai do esgoto. Em 2024, a democracia liberal está morta e assistimos ao seu triste velório nestas eleições presidenciais dos EUA. Nosso desafio atual é colocar o socialismo no seu lugar de direito, como a alternativa mais avançada civilizacionalmente disponível no momento. Os conceitos, atacados pelo pós-modernismo, de civilização e de progresso precisam não apenas ser resgatados, mas reestruturados, sob o risco de perdermos o lugar de vanguarda da humanidade. O socialismo não pode se perder na crítica vazia dos desusos desses termos feitos pelo capitalismo, mas apontar direções de civilização real e de progresso real, significando a melhora das condições de vida do ser humano no mundo, sob o risco de perder a ideia de alternativa de futuro para o próximo engodo fascistoide do capital.

Voltando aos EUA, diante do falecido ricaço, dois herdeiros brigam pela herança. Um lado, do Trump, quer descartar, de vez, a máscara. Querem assumir que a "democracia liberal" é o domínio abertamente hipócrita do homem branco através da força, e que a liberdade é a liberdade do capitalista de fazer o que quiser, custe o que custar; o outro lado, democrata, se apega aos velhos truques, a repetir as mentiras de sempre sob a mesma ideia do "caminho menos pior" entre o fascismo e o socialismo.

A verdade é que as velhas mentiras caíram. A democracia liberal morreu, nem no centro do sistema a ilusão cola mais. Nós, comunistas, estamos há 200 anos esperando o momento em que finalmente fica óbvio e incontornável que precisamos superar o capitalismo e que essa superação se dá na tomada do poder pela classe trabalhadora organizada a nível tanto nacional quanto internacional. É heroica a situação das nações que permaneceram unidas sob a liderança de partidos comunistas mesmo diante da situação aparentemente irredimível que foi o fim da URSS. Tamanha força de resistência e organização deve ser nosso farol e ponto de partida: a defesa do socialismo real. É sempre questão de tempo para o capitalismo se desintegrar numa nova crise, e são esses os momentos mais cruciais para apontar as mentiras que a ideologia tende a esconder.

Enquanto assistimos ao velório-espetáculo nos EUA e aguardamos para qual lado vai a herança da falecida democracia liberal, precisamos conseguir antever as possiblidades que esta situação gera para a organização da classe trabalhadora a nível de discurso e de prática.

Precisamos, a nível de discurso, pontuar a morte da democracia liberal como alternativa civilizatória, e que estamos, mais do que nunca, entre a barbárie do capitalismo, vivida dia a dia pelos trabalhadores, cada vez mais esmagados pela precarização neoliberal, e entre a superação dessa crise, apontada pelo socialismo. O fim da farsa da democracia liberal é, para nós, a possibilidade da aurora da democracia popular como a nova forma hegemônica. Precisamos posicionar nossas velas na direção dos ventos da história, e precisamos fazê-lo de forma mais eficaz do que as forças da reação. Precisamos fazer dos tempos de crise, tempos de esperança.

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