A capa do mago, a orelha de burro e o rei nu

Quem deve falar? Quem deve ser ouvido? A quem devemos destinar esse nosso bem tão precioso que é a nossa atenção? Essa não é uma pergunta menor, pelo contrário, a resposta para essa pergunta é o que vai determinar todo o destino de uma sociedade.

Quem quer falar e ser ouvido precisa convencer o público a escutá-lo. Mais do que isso, a obedecê-lo, a seguir suas instruções, que é o objetivo final da fala pública: o convencimento. Para que o precioso convencimento seja alcançado da forma mais inquestionável possível, cada sociedade estabelece alguns sinais de poder e autoridade, que são rapidamente reconhecidos e seguidos pela população em geral. A coroa do rei, a armadura do cavaleiro, a batina do sacerdote, o vestido extravagante da rainha, o terno do capitalista, a farda cheia de medalhas do general. Enfim, sinais de distinção, riqueza, sabedoria, poder, sinais que gritam "eu sei mais", "eu valho mais"; "eu tenho, você não tem"; "eu falo, você escuta". No meio da mágica circense, da hipnose e performáticos da mente, chamam esse recurso de a "capa do mago". É o recurso visual que facilita a atenção e a sugestionabilidade de alguém.

Antes de continuar, é preciso que eu deixe claro que não acredito que toda a humanidade seja uma tábula rasa e que tudo esteja nivelado, não, nem que isso seja desejável. Claro que existem diferenças, individualidades, disposições e talentos. Claro que há pessoas que estão muito mais autorizados e capacitados a falar sobre certos assuntos do que outras. O problema começa quando a capa do mago é o que lhe faz voar, e não o contrário. Quando o símbolo de autoridade fala mais que a verdade que ele simboliza. A aparência supera a essência, o tolo veste a coroa e o poste mija no cachorro.


Nos idos da década de 2020, vivemos um desses momentos em que as forças reacionárias do capital estão livres, leves e soltas, e após séculos de frustração das pessoas com o futuro brilhante que nunca chega, a obscura capa do mago anda mais poderosa que o jaleco asséptico do cientista. O terno do pastor/empresário seduz mais do que a calça jeans do trabalhador. Até quando os bilionários tentam se passar por pessoas comuns, e popularizam a camiseta plana, é como um antídoto preventivo, de que "somos normais, todos podem ser como nós, basta se esforçar e trabalhar para mim, seja um empreendedor". A estratégia dos usurpadores da "capa do mago" passa justamente por quebrar a identidade de classe dos trabalhadores. Tudo o que existe é uma sociedade de empreendedores, embora 99,9% dos "empreendedores" trabalhem para o 0,01% dos empreendedores de verdade, direta ou indiretamente, dependendo de suas plataformas.

A dialética de senhor e escravo de Hegel pode ser esclarecedora nessa situação. Se engana quem pensa que a escravidão só atinge o cativo. O próprio mestre tem sua identidade condicionada por essa relação. Depende do escravo tanto para se afirmar como mestre, como para sua própria existência, uma vez que sua riqueza e posição provém do trabalho do escravo. O escravo, por sua vez, se torna uma não-identidade, ele aspira ser mestre, se convence, dentro de si, que é um mestre desprovido de posses. Aspira ser o chicote que fere suas costas. E o senhor sabe bem que, se não escravizar cada vez mais, arrisca sua própria posição, e se degenera na dependência e exploração. Deixa de merecer qualquer posição de senhorio. Enquanto o senhor de uma relação se apossa da capa do mago, precisa, na mesma medida, criar um símbolo de rebaixamento, uma coroa de espinhos para o inferior. Relega ao escravo a orelha de burro, o símbolo do grilhão, da burrice, do fracasso. Para que o senhor possa se afirmar senhor por suas próprias qualidades, precisa dizer que o escravo é escravo por sua própria incompetência, por sua própria "mentalidade de escravo", por sua própria falta de indústria, por não ser empreendedor o suficiente. É uma relação louca, e se a realidade não corrobora a loucura de quem se afirma senhor, é preciso distorcer a realidade por meio de símbolos.

Como a realidade sempre se impõe aos símbolos, há dentro de todos a certeza da loucura do mundo. O papel da capa do mago, nesse cenário, é distrair as pessoas dessa sensação. Afastá-las de todo conhecimento. Reafirmar uma magia simbólica que não tem relação com a realidade. Quando a população acredita em uma magia ultrapassada, mesmo vivendo numa sociedade científica, a capa do mago precisa assumir novas formas.

Sobre economia, se escuta o banqueiro, de terno, que lucra com toda a irracionalidade que sufoca a economia popular, para que ele continue inchando seus lucros via juros.

Sobre religião, se escuta o pastor, de terno, que traduz a linguagem econômica para a religião, e o próprio Deus passa a ser prometido ao fiel, em todo o seu desamparo, como um meio de prosperar. Mais do que isso, há um retorno do argumento do direito divino dos reis, agora, o "direito divino do empreendedor". Se eu prosperei, foi porque Deus quis. Calvinismo for dummies.

Sobre política, se escuta o "influenciador digital", que utiliza todos os discursos anteriores e convence a opinião pública através do medo, para que os símbolos de poder continuem a ser obedecidos. E quando os símbolos importam mais do que a verdade, passamos a viver no império da mentira. Cada um vive a própria "narrativa" que seja a mais adequada e a que mais mobilize a mediocridade do senso comum.

O conto do rei nu ainda nos oferece um exemplo de quando a distância entre símbolo e realidade assume um ponto de ruptura. Um rei vaidoso é enganado por um charlatão que vendia a roupa mais magnífica do mundo, porém, que só podia ser enxergada por pessoas inteligentes. Para não se passar por tolo o rei fingiu que podia ver a roupa, e a corte, hipócrita e puxa-saco, não se atreveu a contrariar o rei. Um desfile foi organizado para o rei apresentar à sociedade sua nova roupa e todos fingiam normalidade, alguns até já encomendavam uma igual ao alfaiate/charlatão, quando uma criança naturalmente anunciou: o rei está nu!

No conto, o descolamento da realidade chega a tal ponto, que a capa do mago se torna a nudez. Até que a honestidade infantil restabelece a verdade. A criança do conto é a contraparte simbólica que o rei reprimiu por sua vaidade. A criança é a parte da realeza que justifica o próprio nome, a parte que regula a realidade. Um rei sem contato com o real, não merece sequer o nome. A metáfora é engraçada, e embora nossa situação seja de ruptura simbólica, a nossa situação é a oposta: o rei, diante da ruptura simbólica, precisa conscientemente se afirmar nu. Tirar ele mesmo as capas mentirosas e charlatãs, e voltar à verdade. Um reset simbólico.

Nesse cenário triste, nosso papel é exatamente esse: da criança que reconecta a realidade, do rei conscientemente nu, o louco que grita no deserto e come gafanhotos. O pendurado, que mantém sua lucidez mesmo no momento mais impossível. E nossa nudez, é a nudez de quem vê além do símbolo, não reivindica escuta passiva, nem obediência, mas reivindica diálogo, compreensão mútua, amor.

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