O fracasso da internet e o engodo da retórica das "bolhas digitais"

No comecinho de 2017 escrevi um texto sobre como a internet havia fracassado completamente em seu intuito de ser uma ferramenta para o avanço da sociedade, na medida que ela foi completamente instrumentalizada pelo capital. Na época, se popularizava a discussão sobre as "bolhas" e as fake news, e a pós-verdade, e todas essas coisas que a eleição do Trump colocou em evidência.

Hoje eu vejo dois defeitos principais nesse texto, e por isso escrevo este aqui: primeiro, era otimista demais, a internet não simplesmente fracassou como sendo um instrumento para o avanço da humanidade ou algo do tipo, a internet tá destruindo tudo. Segundo, o conceito de bolha é, na verdade um engodo que ajuda nessa destruição.

Começo pelo segundo tema. Desde que se começou a falar de bolha, eu já deveria ter me ligado nesse aspecto simples e muito importante: quem falava em bolha virtual, e por quê? Pois bem, quem falava isso eram youtubers, e logo a moda pegou entre essa galera bolsominion para dizer que a esquerda e os movimentos sociais vivem na bolha. Olha que surpresa, era retórica liberal usada para atacar a esquerda.

A retórica de que "vivemos em bolhas" é despolitizante, porque parte do ponto de que, supostamente, estamos cada vez mais fechados em nosso próprio mundinho e com cada vez menos disposição de conviver e dialogar com o contraditório, isto é, nos conciliar dentro do grande esquema capitalista das coisas. A grande surpresa é, olha só, que sempre foi assim. E, pelo contrário, a lógica da divisão, da polarização e da eliminação do inimigo foi muito mais forte no decorrer da história do que é agora. Guerras de todas as naturezas, genocídios, revoltas e revoluções é o que mais há. O esforço de conviver com as diferenças é muito recente na história da humanidade.

E é no momento em que os grupos que sempre foram os explorados da história ganham alguma voz e espaço no espaço público, surge a retórica de que "agora vivemos em bolhas" que estão dividindo a sociedade. Como se o que esses grupos e movimentos sociais não tentassem justamente consertar essas divisões que sempre estiveram aí.

Que os algoritmos da internet favorecem que uma pessoa se radicalize, não há qualquer dúvida. Bem como isso funciona muito melhor para a extrema direita, pela maior propensão em acreditar em qualquer coisa que valide seus posicionamentos elitistas ou preconceituosos. Mas a pegadinha é justamente essa, embora seja verdade que a internet facilite, e até estimule essa radicalização, o discurso da bolha não está pela superação das injustiças, está pela preservação da paz social dentro da ordem burguesa, sem romper com nada: retórica liberal. Por mais que quem tenha começado com essa história de bolha estivesse bem interessado, esse tipo de discurso foi completamente apropriado para dar gás à retórica de direita de que os "esquerdistas estão dividindo a sociedade". Como se perceber as injustiças e tentar combatê-las fosse criar a divisão, em vez de justamente tentar solucioná-la.

Proponho então um exercício: quando ouvir falar em bolha, preste atenção em quem está dizendo, por que está dizendo e em prol de qual tipo de atitude política.

Outro aspecto do erro que é se falar em bolhas é porque a "bolha" dá uma falsa impressão de isolamento, de que um grupo se constitui voltado para si. Quando é justamente o oposto, todo grupo se constitui por um processo de diferenciação. Para que exista o nós, tem que existir o outro. Mais do que isso, a dialética nós-outro (principalmente na internet) se dá em um embate constante com esse outro. 

Veja, por exemplo, a retórica bolsonarista. O elemento que dá o mínimo de coesão entre conservadores católicos, evangélicos fundamentalistas, milicos, liberais e quem mais se presta a esse circo de horrores, é o antipetismo. Então é preciso dar moral para um imbecil que acha que floresta não pega fogo porque é úmida, porque os comunistas do mal estão querendo dar mamadeira com bico de piroca pras crianças.

Os incels, pra dar um exemplo de grupo digital típico de nossos tempos, sem a constante validação que as mulheres malvadonas são suas inimigas, não tem elemento de coesão. E essa validação se dá no presente e na constante interação com o outro, por mais distorcido que seja esse processo. Então é preciso perseguir mulheres feministas, eleger inimigas, organizar ataques. 

Por mais deslocadas que essas pessoas se sintam da sociedade, no momento em que elas adquirem uma identidade de grupo contra outro grupo, e expressam uma hostilidade real e explícita, como se pode falar em bolha? É fogo cruzado. A ideia de isolamento, alienação, inação e falta de contato com a realidade que a figura "bolha" passa, está muito longe da realidade. E essa metáfora existe justamente no intuito de levar a crer que qualquer processo de diferenciação e polarização é um distanciamento da realidade, e que a realidade é, e só pode ser esta: a ordem burguesa liberal e de livre mercado. Porque, afinal de contas, a história acabou com a queda do muro de Berlim - pelo menos é o que querem acreditar os liberais mais cretinos. 

Breaking news (duzentos anos atrasada): a polarização é parte indissociável de um mundo dividido em classes sociais.

Não são bolhas, nunca foram. São redes. É uma rede, World Wide Web. Tentar caracterizar a internet como bolha, é chamá-la justamente do seu oposto, e quem leu um pouquinho sabe que é justamente assim que funciona a ideologia. 

A questão então não é dizer que a internet tem aspectos negativos porque está isolando os grupos. Ela só dá mais poder e espaço aos grupos mais violentos, mal-intencionados e apelativos. E como o grande business que é, é mais favorável à ideologia burguesa que assim seja. O que quer que gere engajamento e lucro sem confrontar os ideais do livre mercado. A questão, portanto, é que essa conexão em rede entre as pessoas, dependendo de como se dê, pode ser extremamente prejudicial. E a internet hoje, pelo modo como ela funciona, monopolizada pelas grandes corporações (como todo capitalismo desregulado tende ao monopólio), é uma grande ferramenta para o retrocesso para tempos de mais violência. 

E ressalto: a polarização existe a partir do momento em que a sociedade se divide em classes, então também não venham com essa ideia de que agora as coisas estão mais polarizadas, não. Simplesmente há uma maior violência contra o lado explorado da sociedade porque temos a extrema direita no poder, como sempre aconteceu onde quer que a extrema direita estivesse no poder. Não estamos mais polarizados, a corda do jogo político simplesmente está muito puxada para a direita, após o fracasso da tentativa petista de conciliação de classes, é isso o que dá essa impressão de "polarização".

A saída, portanto, não é atacar essa "polarização" da sociedade e apostar novamente na conciliação de classes que falhou miseravelmente após o golpe em 2016. Muito menos aderir a retórica liberal que precisamos furar as bolhas para convivermos pacificamente no país do pirulito, desempregados, sem aposentadoria e com os pobres cada vez mais pagando pelos privilégios da burguesia rentista. Temos uma corda para puxar.

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