Jogador Número Um são duas horas da indústria cultural chupando o próprio pau. A nostalgia tem um papel fundamental aqui, porque o passado é o pau, o presente é a boca. A cobra tem que morder o próprio rabo nesse eterno retorno do mesmo que é o que o Mark Fisher chamou de realismo capitalista.
Falar de realismo num filme sobre realidade virtual pode parecer estranho, mas não é. Porque o realismo capitalista não tem a ver com a noção de realidade em contraponto a uma ilusão, ou uma realidade virtual. Realismo capitalista é a tendência de pensar que não há alternativa ao capitalismo, portanto tudo o que é possível fazer é minimizar seus danos, abrir concessões, para que o sistema possa continuar funcionando da melhor maneira possível. É um capitalismo sem utopia, sem futuro. É o capitalismo que convence as pessoas que o melhor a fazer é abrir mão de alguns de seus direitos, do contrário o mercado ficará tristinho e não vai investir, a economia colapsará. É o capitalismo onde ou você tem trabalho, ou tem direitos. É o capitalismo sem horizonte onde vivemos.
Agora, o que Jogador Número Um tem a ver com isso tudo? Antes de falar sobre a relação do filme com esse realismo capitalista, é melhor falar da relação do filme com essa outra problemática envolvendo o termo realismo, que é a dicotomia ilusão versus realidade.
É preciso dizer que o filme trabalha isso melhor que outros medalhões de Hollywood, como o próprio Matrix, ao qual o filme chega a fazer uma leve referência, principalmente na figura do vilão, cujo avatar é uma mistura de Superman do mal com Agente Smith, e uma breve troca de socos entre ele e o protagonista remete sutilmente a Smith e Neo.
Mas antes que eu me perca nesses detalhes autofelatórios do filme, em Matrix há uma distinção rigorosamente platônica entre o mundo real e a Matrix. A Matrix é uma ilusão para escravizar a humanidade, e o mundo real, mesmo sendo uma merda, é a única possibilidade de liberdade. Apesar das Wachowski utilizarem Baudrillard, o próprio afirma em uma entrevista que elas não entenderam bem seu pensamento, que era sobre justamente a crescente incapacidade de distinguir o real e o virtual. Os últimos filmes da trilogia acabam tentando corrigir esse erro, colocando a própria resistência de Zion no mundo real como parte da programação da Matrix, mas todos sabem a decepção que foram os dois últimos filmes. Além disso, passamos de uma distinção radical entre real e virtual, para um controle total do virtual sobre o real. Nesse sentido, para Baudrillard, Matrix realmente não aborda bem o problema da simulações e dos simulacros.
Em jogador Número Um as coisas são mais fluidas, e há uma interpenetração entre o real e o virtual. A exploração do trabalho, por exemplo, chegando até mesmo à escravidão por divida, é feita através de serviços prestados nesse mundo virtual. A grande corporação do mal aparentemente controla tudo mediando esses espaços do virtual e do real, não há uma separação tão clara. O futuro representado no filme é cyberpunk, favelas e deterioração total de um lado; riqueza de outro. Porém, essa divisão do mundo real não se traduz no mundo virtual, onde não há, ou não são representadas divisões de classe - aqui uma falha, se esses mundos se interpenetram, como um não reflete as contradições do outro? Ainda assim, o mundo virtual acaba cumprindo a função de ser essa janela ideológica, a partir da qual o pobre, fudido no mundo real, pode sonhar com uma vida melhor a partir do mundo virtual, uma vez que parece haver alguma possibilidade de ascender economicamente a partir de seu trabalho no mundo virtual. Desse modo, há uma total mescla entre entretenimento e trabalho, que ao mesmo tempo que é uma janela de ascensão, se traduz, principalmente para os trabalhadores escravizados por dívida, em exploração total.
Agora que o ponto positivo foi colocado, o resto é deprimente. Lembram-se do realismo capitalista? Pois bem, isso se traduz no filme principalmente através da falsa dicotomia entre "bom capitalista" versus "mau capitalista". De um lado temos o "bom capitalista", o nerd gênio esquisito disfuncional obcecado pelo trabalho e que transforma o mundo através de suas inovações tecnológicas. Esse é o arquétipo mais perigoso atualmente, o arquétipo do Bill Gates, do Zukerberg e todos esses semi-deuses do Vale do Silício.
O primeiro perigo é que esse arquétipo do "bom capitalista" denota uma certa dicotomia com o "mau capitalista", o que é absolutamente falso na vida real e um maniqueísmo típico de fábula infantil. No filme, o inventor do jogo cumpre esse arquétipo do "bom capitalista", ao mesmo tempo que parodia o arquétipo do velho sábio, do mentor, e é exaltado como aquele que quis criar um mundo incrível para todos. Por outro lado, o "mau capitalista", na figura da grande corporação e do seu CEO, quer pegar essa tecnologia incrível criada pelo "bom capitalista" e torná-la numa mera máquina de lucro às custas da exploração dos outros. COMO SE ESSE JÁ NÃO FOSSE O CASO. Como se o problema não fosse o sistema capitalista, mas maus operadores do sistema capitalista. Por consequência, a solução é que os bons trilionários vençam os maus trilionários, assim os bons trilionários podem gastar uma fração de seus trilhões com filantropia e caridade. Filantropia e caridade são pilares fundamentais do realismo capitalista, uma vez que alimentam o mito do bom capitalista.
O "bom capitalista" do filme é referido diversas vezes como trilionário, e ninguém é trilionário por mérito próprio, sem explorar os outros. No contexto do realismo capitalista, a exploração não é reconhecida como tal, uma vez que é naturalizada já que não há alternativa melhor. Somente a exploração extrema, no caso do filme a escravidão por dívida, é reconhecida como tal.
Aqui reside o segundo perigo: a fortuna trilionária do "bom capitalista" é tomada como a coisa mais natural do mundo, é tão justificada, tão legitimada, que nem sequer precisa ser justificada ou legitimada, é simplesmente apresentada como uma informação natural. "O gênio bom capitalista é trilionário e quem vencer o joguinho fica com a sua fortuna". É a ideologia da meritocracia, onde um superindivíduo faz supercoisas e, por consequência faz uma superfortuna, e quando ele morrer, essa fortuna passará, naturalmente, para outro superindivíduo que a merecer. No filme, todos os aspectos de exploração que envolvem alguém se tornar trilionário são suprimidos, tudo o que existe é um gênio que mereceu sua fortuna, enquanto a maioria da população mora em trailers empilhados uns nos outros.
Além desse problema da dicotomia "bom capitalista" versus "mau capitalista", FUNDAMENTAL para a manutenção do realismo capitalista, há a questão cultural: a nostalgia mobilizada como força autofágica, ou como disse antes, autofelatória da indústria cultural. No filme, a cultura pop, uma vez que ela é quem banha e dá vida aos ambientes virtuais, vale muito. Ela é o cimento que mantém o mundo virtual de pé. Logo, conhecer a cultura pop é fundamental, saber as referências e tudo o mais. Isso serve não somente como um modo de agradar o espectador do filme, nessa fórmula de "peguei a referência" que já tem sido utilizada há muito tempo pela indústria e sobre a qual já falei em outros fragmentos de textos no passado, mas mostra realmente o poder que esse tipo de forma cultural exerce nas relações mediadas pelo virtual. Referências em comum funcionam como cola social, separa até os bons dos maus. No filme, enquanto os bons são hipsters manjadores de toda a cultura pop retrô, o mau é aquele que não tem esse arsenal cultural, é só um cuzão atrás de dinheiro. São os cools contra os caretas. A juventude é uma referência ao new wave pós-punk e jogos retrô.
Claro que o filme é um líbelo à cultura de videogames e tudo o que a cerca, mas, mais do que isso, é sintoma de muitas coisas. A premissa de um vilão cuja vilania é querer transformar o mundo virtual - que já media todas as relações do mundo real - num pay to win, é engraçadinha e se comunica bem com o público, mas por trás de premissas engraçadinhas e descoladas, o "bom" e o "mau" capitalista são na realidade a mesma pessoa, e é ele quem está ganhando dinheiro com o filme e com isso tudo. Além disso, fiquemos nós, no mundo real, subscritos aos arquétipos próprios dos videogames, dos super-heróis e etc, e realmente não haverá futuro outro que o realismo capitalista. A fórmula narrativa do superindivíduo que faz por merecer superprêmios e superfortunas, cabe tão bem ao realismo capitalista quanto três chaves mágicas cabem numa fechadura.
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